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Primeiro show da era Covid-19 nos EUA tem medição de temperatura e público reduzido

Para apresentação do cantor Travis McCready, houve quem comprou seis ingressos para ocupar sozinho um camarote

Por O Globo 20/05/2020 09h09
Primeiro show da era Covid-19 nos EUA tem medição de temperatura e público reduzido
A fachada do Temple Live, em Fort Smith, nos EUA - Foto: RANA YOUNG / NYT

 O cantor de música country Travis McCready entoava "Riders", uma letra sobre perseverança, enquanto americanos voltavam a ouvir música ao vivo dentro de uma sala fechada, no espaço Temple Live, na última segunda-feira (18/5). Foi a primeira vez que isso aconteceu no país desde que a pandemia de Covid-19 desplugou a indústria de entretenimento.

— Acho que isso significa esperança para muitas pessoas — afirmou Lance Beaty, presidente da empresa proprietária do local em Fort Smith, no Arkansas. — É um experimento, mas vemos que está funcionando bem.

 

O show ofereceu uma prévia dos caminhos que o meio musical deve encontrar na atual era do distanciamento social. Por enquanto, é hora de esquecer as arenas agitadas com gritos e suor de fãs aglomerados.

Na apresentação de McCready, os frequentadores foram obrigados a comprar assentos em grupos, em espaços que os promotores definem como "casulos" (ou camarotes) — para grupos de amigos e pessoas próximas —, com dezenas de assentos vazios ao redor, para garantir espaçamento entre estranhos. Das 1.100 poltronas disponíveis no local, apenas 20% estavam disponíveis para venda.

Até agora, as turnês de superstars americanos como Taylor Swift, The Black Keys e Bob Dylan permanecem estagnadas nos EUA. Mas Dave Poe, um promotor de eventos musicais em Nova York e co-fundador da organização Independent Promoter Alliance, classifica o evento de segunda-feira à noite como "um grande salto para a indústria".

Do lado de fora da casa de shows, as amigas LaLisa Smiddy e Marcy Randolph, de Duncan, em Oklahoma, demonstraram empolgação com o retorno da música ao vivo. Ambas com 53 anos, elas dirigiram por quase quatro horas para ouvir McCready. Na entrada do estabelecimento, precisaram ajeitar suas proteções faciais e tiveram as temperaturas corporais medidas pelos funcionários do empreendimento.

— Estamos felizes por estar aqui — disse Smiddy. — Sou uma das muitas paranoicas por aí, e, quando vi todo o esquema que esse local havia feito, estava pronta para vir aqui. Acho que fizeram um excelente trabalho.

Muitos espectadores alegaram que foram ao local em busca de um pouco de "vida normal", apesar de a pandemia do novo coronavírus ter tornado esse show algo completamente diferente do convencional. Para Daniel Neathery, de 33 anos, o "novo normal" significou comprar seis ingressos — a cerca de US$ 20 cada — para ocupar sozinho um dos camarotes.

— Para mim, valeu a pena ter alguma normalidade — ponderou ele.

Nos EUA, estados como Texas e Missouri, além do Arkansas, têm reaberto, gradualmente, locais de entretenimento e bares, mediante uma série de restrições. De acordo com o produtor Dave Poe, as primeiras fases de retorno devem acontecer em espaços menores, como o Temple Live, em casas que mantêm custos operacionais baixos, com menos funcionários.

Artistas de grande porte, que normalmente se apresentam em estabelecimentos maiores, ainda cultivam hesitação em possivelmente expor a si mesmos e a seus fãs à Covid-19.

 

— Com a economia do jeito que está, e os preços dos ingressos do jeito que estão, os produtores vão procurar por lugares com capacidades menores para recomeçar o trabalho. de caráter nacional tão em breve — ressaltou o produtor.

A economia de um show que prioriza o distanciamento social ganhou forma no Temple Live com uma equipe de 30 funcionários dentro de uma casa que estava 80% vazia.

Com máscaras, os atendentes guiavam os clientes pelos corredores para reforçar o fluxo de tráfego unidirecional dentro do ambiente. Outros monitoravam os banheiros, para reforçar o distanciamento também ali dentro. Dois balconistas trabalhavam em cada posto de serviço — um para lidar exclusivamente com dinheiro; o outro, dedicado à entrega de alimentos e bebidas.

Mesmo com todos os ingressos disponíveis vendidos, o proprietário da casa admitiu que perdeu dinheiro na noite:

— Claramente não foi uma decisão financeira que nos fez levantar esse show — explicou Beaty.

Na porta do Temple Live,  além de terem as temperaturas medidas, os clientes receberam máscaras (caso já não tivessem usando uma), sendo obrigados a usá-las durante todo o show. Fitas amarelas de advertência dividiam os assentos de veludo vermelho. Parte das pias de banheiro e mictórios foram vedados para que os clientes nunca chegassem muito perto uns dos outros. Setas no chão orientavam o tráfego de mão única, com distâncias preestabelecidas entre cada pessoa.

Show foi motivo de embate político

O show de segunda-feira marcou o ápice de um confronto entre os administradores do Temple Live e o governador Asa Hutchinson. A apresentação de McCready havia sido originalmente agendada para sexta-feira (15/5), três dias antes da data que a autoridade definira a reabertura de espaços fechados, como teatros, arenas e estádios — todos com público máximo de 50 pessoas.

Os representantes do Temple Live argumentaram que, com as medidas de segurança apropriadas, eles deveriam seguir as mesmas diretrizes estabelecidas para lugares de prática religiosa, liberados para receber um número maior de frequentadores.

— Se você pode ir a uma igreja e isso é uma assembléia pública, não há diferença — disse Mike Brown, representante do Temple Live. — Por que é bom para um grupo ter uma reunião pública e não é correto que um local de música tenha a mesma oportunidade?

Autoridades de saúde do Arkansas argumentaram que um show representa um perigo maior, porque tem mais chance de atrair visitantes de fora do estado, e logo emitiram uma ordem para que a atração musical fosse cancelada. Quando os produtores se recusaram a recuar, o governo apreendeu a licença de funcionamento do Temple Live.

Numa entrevista coletiva na tarde da última quinta-feira (14/5), Beaty, o proprietário da casa, argumentou que seus direitos constitucionais haviam sido pisoteados. O empresário, porém, admitiu que estava impotente para lutar na Justiça:

— Acho que o governador quer que eu diga: "Bem, vamos adiar o show" — disse ele, à época. — É isso que você quer ouvir, governador? Então, vamos mudar o show. Espero que esteja feliz.

Aparentemente, o governador ficou mesmo feliz. Após conceder a derrota, o Temple Live teve sua licença comercial devolvida e a capacidade de 229 pessoas aprovada oficialmente para o show da noite de segunda-feira.

O show de McCready não dá sinais claros, porém, de que a indústria do entretenimento voltará tão logo em força total. Audrey Fix Schaefer, porta-voz da organização National Independent Venue Association, disse que não tem conhecimento sobre nenhum show planejado por seus 1.600 membros no pais.

O setor teme sua saúde financeira por causa dos fechamentos generalizados, contas a pagar e milhões em receita perdida devido aos reembolsos de clientes por shows cancelados.