Um túmulo para Maria
Eva Perón foi mumificada. Seu corpo foi preservado para a posteridade. Mas, temendo-se um endeusamento de seu cadáver, os políticos que sucederam seu amado Perón, esconderam-na. Foram anos de peregrinação, esconderijos secretos, além de seguidores malucos que se apaixonavam pela morta. Passaram-se anos até que ela pode descansar tranquilamente na Ricoleta e esses ventos do tempo inspiraram artistas e biógrafos a construírem e preservarem o mito de Evita.
Nos recônditos ensolarados e quentes do Ceará, e, guardadas aqui as devidas proporções visto o cunho religioso dessa segunda morta, também houve uma falecida que não teve sossego eterno em sua morte. Seu corpo insepulto até hoje não foi encontrado. “— Pobrezinha. Muita gente ficou triste e revoltada com a retirada da santa. A Igreja não queria, mas a gente rezava no túmulo dela. Agora, ficou apenas na saudade. Tudo dela foi queimado, as imagens, os santinhos... Como se ela nunca tivesse existido. Como é que pode, uma mulher sem túmulo? Uma santa?” (p. 232)
O que teria acontecido a essa pequenina mulher? Analfabeta e pobre que tanto rebuliço causou no sacro santo seio da Igreja católica. Transformada em beata pelo seu padre confessor, o controverso Padre Cícero, teve uma vida dedicada a ajudar as pessoas, menina simples e que nunca teve medo de trabalhar, “com tão pouca idade, compreendia as coisas divinas e agora, verdadeiramente tinha Cristo no coração. Iria se dedicar à vida religiosa para sempre.” (p. 46), cumpria todos seus afazeres e ficava em contemplação e enlevo celestial, tinha visões com os santos e compartilhava tudo com o padre de Juazeiro.
Mas o que torna essa beata diferente de tantas outras - Maria de Araújo - tinha o controverso "poder" de transformar a hóstia em sangue.
Esse estigma lhe custou caro e ao padre quase sua excomunhão.
O milagre do Juazeiro tornou suas personagens em transgressores da ordem cristã. Maria, uma quase indigente filha da extrema pobreza nordestina e um padre com claras tendências a líder político tornaram-se os pilares de uma quase revolução. À Maria cabia o papel de semi-santa e ao padre, seu principal divulgador. Mas os stigmas de Maria eram reais? Poderia essa representante do povo transubstanciar o sangue do cordeiro? Era um embuste do Padre que queria ser o Messias do sertão?
A escritora Nise Costa e Silva, de maneira romanceada dá voz àquela que não tinha nenhuma, para que fosse ouvida na contemporaneidade, partindo da extrema luta que teceu em prol do apagamento total da vida da beata até a tentativa de reabilita-la. O apagar quase completo de sua vida e o esquecimento quase total de seu nome são os pontos de partida da escritora. A vida, os pequenos detalhes do suposto milagre, o embate do Padre com a Igreja, um combate ferrenho, típica luta David & Golias são detalhados; as motivações, os tantos pareceres e juntas multidisciplinares que foram sendo formadas para a investigação e um possível desacreditamento daquele, para muitos, escárnio da fé católica.
Uma leitura instigante que fica mais perturbadora se realizada junta com o belo livro "Padre Cicero: Poder, fé e guerra no Sertão" do escritor (cearense) Lira Neto. Recomendo uma leitura casada dos dois livros, dos dois mitos do sertão. A Beata insepulta, A Mulher Sem Túmulo e seu amigo, Padre e confessor. Uma história de lutas, fé, milagres, mentiras e aquela vontade de voltar no tempo e conhecer os protagonistas desse milagre do Ceará.