Quando a dor transborda: o que é o estado puerperal e como ele pode impactar a responsabilização penal da mãe de Ana Beatriz

Fomos todos profundamente abalados pela notícia do assassinato da pequena Ana Beatriz, com apenas 15 dias de vida. O crime, confessado pela própria mãe, Eduarda, tem gerado comoção, revolta, mas também um necessário debate: o que é o chamado estado puerperal e como isso pode influenciar a responsabilização penal em casos como esse?
Com o país ainda em choque, começaram a circular rumores de que Eduarda estaria em estado puerperal no momento do crime. É importante esclarecer: até agora, essa informação não foi confirmada oficialmente. São apenas boatos. Ainda assim, o tema merece atenção técnica e tratamento humanizado, especialmente por envolver aspectos psiquiátricos que, historicamente, têm sido invisibilizados.
O que é o estado puerperal?
O puerpério é o período que se inicia logo após o parto e pode durar semanas ou meses, sendo um processo de grandes transformações hormonais, físicas e emocionais. Quando essas transformações se manifestam de forma intensa e patológica, podem desencadear quadros psiquiátricos graves, como a psicose puerperal, uma forma rara e aguda de transtorno mental que afeta algumas mulheres no pós-parto.
Trata-se de uma condição reconhecida pela medicina e pela psiquiatria forense, caracterizada por delírios, alucinações e perda de contato com a realidade — um verdadeiro colapso da consciência. A mulher, nesse estado, não é capaz de compreender o caráter ilícito de seus atos ou de agir conforme esse entendimento, o que a torna, juridicamente, inimputável.
O que diz a lei?
De acordo com o artigo 26 do Código Penal Brasileiro:
“É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.”
Ou seja, se — e somente se — for comprovado por perícia médico-legal que Eduarda, no momento do crime, estava acometida por psicose puerperal, ela poderá ser declarada inimputável. Isso não significa que ficará impune. Nesses casos, a pena pode ser substituída por medida de segurança, com internação em hospital de custódia, visando tratamento psiquiátrico.
E como se comprova esse estado?
O estado puerperal, enquanto causa de inimputabilidade penal, deve ser reconhecido por meio de exame pericial. A avaliação psiquiátrica busca compreender o contexto da mãe: histórico de saúde mental, suporte familiar, condições sociais, sintomas anteriores e posteriores ao parto, além do relato sobre o momento do crime.
É um processo técnico, delicado e que exige olhar clínico, escuta sensível e imparcialidade.
Não é desculpa, é diagnóstico
É comum que diante de crimes envolvendo mães e seus filhos, a sociedade reaja com dureza, exigindo punições severas. Mas o Direito Penal não pode ser movido por vingança. Ele precisa ser justo. E justiça só existe quando conseguimos diferenciar maldade de doença, crueldade de colapso psíquico.
A psicose puerperal, quando comprovada, não é desculpa. É diagnóstico. É tragédia dentro da tragédia.
Por que é importante falar disso?
Porque vivemos em um país onde a saúde mental materna é negligenciada, onde mulheres são deixadas sozinhas em sua dor, sobrecarregadas e sem rede de apoio. Onde adoecer é visto como fraqueza e pedir ajuda ainda é tabu.
Eduarda, a mãe de Ana Beatriz, responderá pelo que fez. Mas que isso se dê com os olhos da justiça — e não com os punhos da crueldade. Que o processo seja guiado pela ciência, pela escuta e pelo compromisso com a verdade, por mais dura que ela seja.
E que Ana Beatriz não tenha morrido em vão. Que sua partida nos faça repensar o modo como olhamos para as mães: nem sempre elas são monstros. Às vezes, são mulheres que gritam em silêncio, até que o grito se torne irreversível.

Sandra Gomes é mãe, mulherista e ativista social. Advogada Criminal, Pós Graduanda em Direito Penal e Processual Penal, Pós Graduanda em Direito Médico. É ex Presidente da Comissão da Igualdade Racial da Abracrim AL e Ex Vice Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/AL.