Economia
Pecuária de leite: atividade complexa que está se tornando cada vez mais profissional no Brasil
Os ciclos de preço do leite no mercado internacional duram de 3 a 4 anos
Filho de produtores de leite e café no Sul de Minas, Glauco Carvalho decidiu estudar economia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para compreender melhor as questões econômicas relativas ao setor agrícola. Suas raízes rurais o levaram a fazer mestrado em economia aplicada na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP). No início dos anos 2000 chegou a trabalhar como analista setorial da Gazeta Mercantil. Hoje extinto, o jornal foi o maior veículo especializado em economia do país. O contato com o jornalismo aperfeiçoou sua capacidade de tornar claro para o grande público a dureza do “economês”.
Não demorou para que se tornasse consultor da Mendonça Barros e Associados, uma das grandes consultorias econômicas nacionais. Também foi professor dos cursos de economia e administração. Em 2005, aproximou-se mais ainda da agricultura, tornando-se pesquisador da Embrapa Gado de Leite, cargo que exerce atualmente. Recentemente, Carvalho passou quatro anos nos Estados Unidos, onde se tornou PhD em Economia Agrícola pela Texas A&M University. De volta à Embrapa desde 2015, o pesquisador trabalha com temas relacionados à agricultura e políticas públicas, economia da produção e modelos econométricos estruturais aplicados ao agronegócio do leite e commodities agrícolas, sendo constantemente convidado para palestras. À Balde Branco, ele concedeu a seguinte entrevista em que aborda a recente crise internacional do leite, faz um retrato da conjuntura do setor e fala sobre os rumos da cadeia produtiva.
Balde Branco – O mercado internacional de lácteos passou por uma longa crise. O que pode explicar a queda do preço mundial do leite?
Glauco Carvalho – O movimento de preços é explicado pelo comportamento da oferta. Com o fim das cotas na União Europeia, em abril de 2015, vários países expandiram a produção, o que gerou um excedente de leite no mercado mundial. Obviamente, essa expansão da produção teve como consequência a queda de preços. O problema foi que a crise durou muito tempo e prejudicou a rentabilidade das fazendas em praticamente todos os continentes. O reflexo foi uma queda quase que generalizada da produção mundial em 2016, que afetou Europa, Oceania e América Latina.
BB – Como essa crise influenciou o mercado nacional?
GC – Nosso mercado está um pouco descolado do resto do mundo, até porque temos historicamente uma dinâmica própria. O Brasil é um País continental, com uma população continental e nossos movimentos de preços refletem nossas especificidades. E também porque temos um setor relativamente protegido, onde importações oriundas de países fora do Mercosul são tarifadas. De todo modo, excessos de oferta ou de demanda internos criam uma grande oscilação em nossos preços, o que dificulta a gestão na cadeia produtiva. Eu diria que a crise mundial, neste sentido, foi até benéfica para nós já que a produção caiu em vários países, inclusive no Uruguai e na Argentina. Ou seja, caso não houvesse um cenário de rentabilidade baixa em outros países haveria mais excedente de produção a ser exportado para o Brasil, a preços bem competitivos.
BB – É possível dizer que a crise chegou ao fim?
GC – A crise internacional me parece que ficou para trás. O recuo na rentabilidade das fazendas provocou redução do excedente de oferta de leite e dos estoques de derivados. Isso fez com que os preços do leite em pó subissem de 2.000 dólares por tonelada para cerca de 3.000 dólares ao longo de 2016. Com esses preços não se pode falar em crise. Mas ainda não há euforia. Devemos lembrar que o leite, assim como vários outros produtos agropecuários possuem ciclos, com períodos de crise e períodos de euforia. E isso vai continuar a acontecer, pois é da atividade. Os ciclos de preço do leite no mercado internacional, em geral, duram de três a quatro anos. Estamos em um momento de inflexão, deixando para trás uma longa crise.
BB – O senhor acha que a produção brasileira voltará a crescer no ritmo que crescia alguns anos atrás?
GC – Temos condições de crescer em um ritmo acelerado. Há vários indicadores de produtividade que, em média, ainda são baixos, mas com elevada capacidade de resposta. Existem tecnologias surgindo (Compost Barn, por exemplo) e um processo de intensificação da atividade em curso com alta capacidade de incremento da produção. O leite está se tornando uma atividade cada vez mais profissional no Brasil. O setor leiteiro sempre aguentou desaforos, mas isso está mudando e mudando muito rápido. Neste sentido, a velocidade das decisões e a capacidade de adaptação vai fazer toda a diferença. Leite é uma das atividades mais complexas da agropecuária e por ser complexa, nem todos terão êxito e serão competitivos. Por outro lado, muitos produtores vão seguir crescendo com a incorporação de tecnologias de produção e de gestão. Nesse processo, trabalhar a motivação das pessoas, realizar treinamentos e a buscar por maior produtividade é um fator primordial. Entretanto, vejo que o ritmo da expansão da atividade passa por uma definição sobre o que queremos ser e onde queremos chegar. Grande, nós já somos por natureza. Mas temos de pensar em uma estratégia de posicionamento no mercado em termos de competitividade e presença internacional. Vejo dois caminhos: o primeiro é manter um crescimento marginal para atender a expansão da demanda per capita e o crescimento da população. Isso sugere um mercado mais fechado, sem grandes inovações. O consumidor perde com essa decisão. O segundo é mais desafiador e passa por um crescimento mais robusto e uma maior inserção internacional. Várias cadeias de sucesso como a da soja, do frango, do açúcar e do álcool e, mais recentemente a do milho, adotaram esse segundo caminho. Eu, particularmente, gosto mais desta segunda opção pois o bem-estar da sociedade aumenta.
BB – No plano das importações, o que esperar para o ano que vem? Continuaremos nos mesmos níveis de 2017?
GC – Em 2017, nossa importação está sendo menor, por dois motivos principais. Primeiro porque nossa oferta se recuperou em relação a 2015 e 2016, quando houve recuo da produção no mercado brasileiro. Ou seja, estamos com uma disponibilidade maior de leite. O segundo motivo refere-se aos preços internos, que é uma consequência do primeiro fator. Estamos com preços mais alinhados (leia-se competitivos) em relação ao mercado internacional e isso tira boa parte do incentivo a importação. Acredito que em 2018 teremos algo semelhante, uma importação menor, mas ainda com déficit na balança comercial. Não estamos conseguindo avançar muito na exportação. A Viva Lácteos tem feito um belo trabalho para facilitar a inserção internacional, mas é um esforço de longo prazo. A CNA, a OCB e outras instituições têm discutido nossa competitividade em fóruns do leite. Esse é o caminho. Estamos criando um ‘ecossistema’, para usar uma palavra da moda.
BB – Em menos de um mês o Brasil suspendeu e voltou a autorizar as importações de leite em pó do Uruguai. Qual a avaliação que o senhor faz do fato em si?
GC – Essas questões de comércio precisam ser muito bem pensadas e a avaliação técnica é fundamental para as decisões. Me parece que houve a suspensão para atender um pleito de parte da cadeia produtiva, onde o governo foi avaliar as denúncias de eventual triangulação envolvendo o Uruguai. Em seguida, houve a autorização novamente por entender que tal triangulação não existia ou não foi comprovada. Independentemente deste caso ou de outros, vale destacar que motivações oportunistas no comércio internacional são rotineiras e demandam uma postura observadora e técnica do setor produtivo e do governo. Enfrentamos frequentemente diversos casos de oportunismos, embargos e outras medidas anticomércio em outras cadeias produtivas mais orientadas para a exportação. Precisamos nos preparar no leite. Nossa preocupação com o Uruguai é válida para evitar prejuízos a nossa cadeia produtiva. Mas acho que devemos nos preocupar mais com os países africanos e com os países do Sul e Sudeste da Ásia, pois serão grandes importadores em um futuro próximo.
BB – Atribuir ao leite uruguaio a culpa de nossa crise interna não seria algo equivocado, até por que seu fornecimento vinha caindo nos últimos meses, com volumes pouco expressivos?
GC – A conjuntura que estamos vivenciando envolveu vários ingredientes que culminou em queda acentuada de preços. O Uruguai foi apenas mais um ingrediente. Mas as principais razões foram internas. O crescimento da produção de leite a partir do segundo semestre de 2016, estimulada pela rentabilidade favorável nas fazendas, e o fraco desempenho do consumo foram os ingredientes principais. Passamos por uma das piores crises da nossa história e isso afetou profundamente o consumo das famílias. Por outro lado, vivenciamos um período muito bom de preço do leite, com custo de produção relativamente baixo e o produtor acabou pisando no acelerador. Assim, consumo em queda e produção em alta levou ao atual cenário de preços. Vale destacar que o preço caiu em toda a cadeia produtiva. O produtor ficou com margens apertadas e a indústria também. A situação não é pior em função dos preços mais baixos dos insumos, sobretudo milho e soja, que agora começaram a subir. Esse segundo semestre está sendo difícil para toda a cadeia produtiva. Mas o consumidor está se beneficiando de um leite mais barato e devemos observar o crescimento do consumo novamente. Essa é uma boa notícia.
BB – O senhor acha possível esperar uma expansão do setor leiteiro, quando a relação interna do setor nem sempre é marcada por confiança, prevalecendo muitas vezes oportunismo e conflito, principalmente no que se refere a produtor-indústria?
GC – Eu não diria oportunismo e conflito. Obviamente que é uma relação comercial onde o leite ainda é visto exclusivamente como custo para muitas empresas e receita para os produtores. Nesse sentido vai haver uma certa queda de braços. Mas é uma relação de interdependência. Os laticínios precisam dos produtores e os produtores precisam dos laticínios. Pensando em uma relação de longo prazo e de interdependência, creio que iremos evoluir muito nas relações de mercado nos próximos anos. A medida que a cadeia produtiva for amadurecendo e a visão de interdependência for se consolidando, haverá maior alinhamento nas relações comerciais. Já vejo algumas iniciativas de fidelização e contratos acontecendo. São iniciativas importantes, apesar de ainda pontuais. Mas isso não vai eliminar crises e oscilações de preços, pois são questões inerentes a atividade. Neste sentido, precisamos avançar muito em ferramentas de gestão de risco. A falta de dados organizados no setor dificulta muitas coisas e a consequência é que todos tomam decisões no escuro. Quanto menor a transparência, maior a especulação. A cadeia produtiva perde e a sociedade perde. É preciso gerar mais dados e disponibilizá-los. Isso vai possibilitar a realização de inúmeros estudos para apoiar políticas públicas e estratégias das empresas. A disponibilização de dados gera conhecimento. É preciso investir muito nisso.
BB – O senhor tem dito que a competitividade do setor leiteiro é comprometida pelo elevado número de indústrias, dificultando a coordenação entre elas e aumentando a capacidade ociosa. Como ajustar esse quadro?
GC – Sabemos que o Brasil possui muitas empresas (cerca de 2.000 laticínios com SIF) e uma elevada capacidade ociosa. Mas competitividade é mais do que isso. É um conjunto amplo de fatores que envolve questões internas à cadeia produtiva, além de questões externas. Como questões internas eu poderia citar a produtividade dos fatores de produção (terra, mão de obra, capital), qualidade do leite, logística, pessoas, conhecimento e uma melhor coordenação e organização da cadeia produtiva, conforme mencionado na pergunta. O elevado número de empresas é um obstáculo a essa coordenação na medida em que envolve muito atores e uma maior dificuldade de representação e convergência de objetivos. Além disso, essa fragmentação da indústria gera dificuldades na captação de leite, na compra de embalagens/insumos e no relacionamento/vendas com o varejo. Vale lembrar que a expansão do leite UHT fez migrar a comercialização de leite fluido do pequeno comércio para as grandes redes de varejo. Portanto, a indústria de laticínios fragmentada negocia atualmente com um setor varejista bem mais concentrado. Mas a fragmentação não é apenas na indústria. Está no produtor também. E isso encarece a captação de leite pelo baixo volume por quilômetro rodado. No Brasil temos alguns cluster de produção no Centro Oeste de Minas Gerais, no Triângulo Mineiro e na região contigua do Sudoeste Paranaense, Oeste Catarinense e Noroeste Rio-grandense. Tirando essas áreas, a densidade de produção é baixa. Portanto, veja que o tema da competitividade é complexo e diverso. E não falamos das questões externas que envolve taxa de câmbio, regulação, tributação etc. Para ajustar esse quadro, o caminho é o diálogo entre os elos da cadeia produtiva e a geração de dados, tecnologia e conhecimento que permitam a realização de ações para um melhor posicionamento do setor. Em países mais avançados e competitivos o volume de informação é muito superior ao nosso e isso ajuda na elaboração de políticas públicas e estratégias privadas de auxílio na tomada de decisões. Esse é o caminho.
BB – Ainda no plano industrial, o setor tem recebido grandes empresas de laticínios estrangeiras, que fazem aquisições e investem por aqui certos do retorno a médio e longo prazo. A visão do empresário brasileiro do setor não enxerga o mesmo horizonte?
GC – Enxerga sim. O exemplo é que várias empresas brasileiras estão investindo e crescendo. É uma indústria que movimenta cerca de 70 bilhões de reais. Todos sabem do potencial brasileiro no setor. Somos um país continental, com padrões de consumo ainda tímidos em inúmeros derivados. A expansão da cadeia produtiva do leite já é um fato. Nossa produção vem crescendo muito acima da média mundial. E temos recursos naturais, tecnologias e empreendedores para dar continuidade a essa expansão. E é olhando este mercado que as estrangeiras estão investindo aqui. Mas as empresas brasileiras também estão. Em um estudo recente, mostramos que entre 1974 e 2016 a produção brasileira cresceu 374%, enquanto a média mundial ficou em 72%. Isso faz com que o mundo olhe para o Brasil.
BB – Em sua participação num recente workshop promovido pela CNA, o senhor expôs uma série de dificuldades para o Brasil se tornar um player internacional no leite. O que precisaríamos superar?
GC – Naquela reunião vários especialistas contribuíram para a criação de uma agenda positiva. Foi um workshop bastante interessante, envolvendo diferentes visões, mas com um objetivo em comum: melhorar a competitividade da cadeia produtiva do leite. Para isso, elencamos alguns pilares envolvendo aumento da escala de produção, melhorias da produtividade da mão de obra e do capital, qualidade do leite, regulação, incentivo a inovações, entre outros. Enfim, precisamos trabalhar várias questões ao mesmo tempo. Não é tarefa fácil e exige esforço de toda a cadeia produtiva. Mas é preciso começar. Essa agenda positiva, que se iniciou no workshop e ganhou contribuições importantes da Câmara do Leite da CNA é um documento norteador deste processo. Espero que avance.
BB – No consumo interno, observa-se demandas distintas e diversificadas. Em sua opinião, a indústria tem demonstrado preparo para se aproveitar de tais sinais?
GC – A indústria tem inovado, observando as grandes tendências de consumo. A dificuldade é que as mudanças estão acontecendo de uma forma muito rápida. O consumidor de hoje, sobretudo da população mais jovem, tem um comportamento muito menos previsível que os mais velhos. E isso vai gerar desafios e ao mesmo tempo oportunidades para as empresas que se anteciparem. Podemos dizer que existe um consumo em massa, de produtos mais commoditizados, onde o preço é o principal fator de venda e as margens são baixas. Mas existem outros mercados potenciais que tendem a crescer muito. Os novos consumidores querem saber a origem dos produtos, como foram produzidos, sobre o bem-estar animal etc. Querem produtos mais naturais e orgânicos. São nichos de mercado, mas que podem ganhar uma dimensão expressiva pelo tamanho da nossa população. Veja o exemplo dos produtos sem lactose que começaram como micromercados e crescem de uma forma exponencial. Virou moda e mesmo quem não possui nenhuma intolerância está comprando.
BB – O sr. tem destacado o crescimento expressivo do leite na região Sul, diferentemente do que ocorre no Sudeste, quase estagnado. O que tem feito a diferença?
GC – Fizemos um estudo recente sobre a expansão do leite no Sul e diversos fatores parecem explicar esses diferenciais. Talvez o mais importante seja a maior propensão da gestão do negócio ser pautada na rápida adoção de inovações tecnológicas. Além disso, trata-se de uma produção de origem familiar, com terras melhor distribuídas, presença de comunidades rurais e produtores com capacidade de promover rápidas mudanças produtivas e organizacionais. A capacidade de organização dos produtores por meio de sólidas cooperativas é outra característica da região, o que ajuda a reduzir barreiras enfrentadas por produtores menores na compra de insumos, venda de leite, assistência técnica e gestão do negócio. As condições climáticas, com temperaturas mais amenas que outras regiões brasileiras, do outono à primavera, facilita a adaptação de animais de alta produtividade e o cultivo de forrageiras de espécies temperadas, de alta conversão em leite. Enfim, existe uma diversidade de fatores que, somados, fazem a diferença.
BB – De modo geral, o que esperar para a pecuária leiteira em 2018?
GC – É difícil fazer uma projeção, sobretudo com todas as turbulências que o país está vivendo. É como se eu te perguntasse quem será o próximo presidente. Não sabemos nem quais serão os candidatos. Mas enfim, tentando olhar um pouco o cenário atual, não estamos esperamos crescimento produtivo de anos atrás, próximo de 4%, mas acreditamos em crescimento sim. Talvez entre 2% e 3%. Mas como eu disse, a escassez de estatística somado ao fato do cenário político-econômico do Brasil se alterar quase que diariamente, dificulta qualquer previsão. Como fatores positivos, vejo a economia voltando a crescer, uma demanda aumentando e um conjunto de investimentos que vem ocorrendo na intensificação dos sistemas de produção de leite. São fatores que ajudam a sustentar uma expansão da oferta. Por outro lado, a recente queda de preços levou diversos produtores a repensar a estratégia de crescimento. Existem muitos projetos de investimento em fase de implantação e a baixa rentabilidade prejudica muito o fluxo de caixa do produtor. Além disso, o crédito rural está restritivo e lento em sua liberação. Finalmente o clima, por enquanto, não está ajudando e já há reflexos sobre as cotações de milho e soja, piorando a relação de troca do produtor de leite. Mas acredito que será um ano mais equilibrado em termos de oferta e demanda.