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20 anos depois, José Padilha e Bruno Barreto relembram o sequestro que inspirou seus filmes
Roteirista de Última parada 174, Bráulio Mantovani diz que desfecho da tragédia poderia ter sido outro caso o sequestrador fosse branco
No início da tarde do dia 12 de junho de 2000, Sandro Barbosa do Nascimento, de 22 anos, entrou armado com um revólver em um ônibus da linha 174 (Gávea-Central). Interceptado por um carro da PM no Jardim Botânico, o jovem manteve 11 reféns, com todo o desenrolar do sequestro sendo transmitido ao vivo pela TV. Após mais de quatro horas de negociações, enquanto ele saía do veículo com a professora Geisa Gonçalves como escudo, um tiro da polícia atingiu de raspão o queixo da refém, que acabou morta por disparos de Sandro. O sequestrador, por sua vez, foi asfixiado por policiais logo depois de ser detido, no camburão.
A trágica história vista em rede nacional, mais uma crônica das chagas da sociedade brasileira, como desigualdade, racismo e violência, inspiraria dois filmes: o documentário “Ônibus 174” (2002), de José Padilha (codirigido por Felipe Lacerda), e a ficção “Última parada 174” (2008), de Bruno Barreto, com roteiro de Bráulio Mantovani. Duas décadas depois, os cineastas e o roteirista refletem sobre o caso e suas obras.
Padilha diz que o fato de Sandro falar para as câmeras de TV lhe chamou atenção:
— Meu interesse partiu daí. Além, é claro, do drama vivido pelas vítimas e da óbvia incompetência policial. Imaginei que, ao contar a história do sequestro, poderia falar sobre assuntos que iam muito além do ocorrido. Isso antes mesmo de pesquisar a vida do Sandro.
Na essência, nada mudou.No documentário, o cineasta conta a história de vida de Sandro, sobrevivente da chacina da Candelária, em 1993. De acordo com o diretor, ele aprendeu “tanto sobre cinema como sobre a realidade social do Rio” ao rodar o filme:
— A tese essencial de meus filmes sobre a violência carioca é de que ela é causada pelo próprio estado. Por um lado, o estado produz criminosos violentos por conta da falta de estrutura e de instituições eficientes para educar e ajudar as crianças pobres que nascem sem perspectivas em ambientes violentos e controlados pelo tráfico. Por outro, o estado forma policiais despreparados e os insere em uma organização que tem uma forte cultura de corrupção e de violação dos direitos humanos. Desmonte esse duplo processo e a violência cairá rapidamente. Essa é a tese. Na essência, nada mudou — analisa.
Padilha inspirou Barreto
O impacto do documentário de Padilha foi tão grande em Bruno Barreto que o realizador resolveu adaptar a história para a ficção.
— Um filme é bom quando te deixa com perguntas, e saí de “Ônibus 174” com muitas. Achei que só uma versão dramatúrgica desses fatos poderia me responder. Muito ali era real, mas não parecia verossímil — diz Barreto. — Vi que tinha uma história não contada ali, da condição humana. Aquilo era Charles Dickens. O filme foi confundido como mais um favela movie, mas não era. Era centrado no afeto, na relação entre mãe e filho. O que me interessa é a relação humana.
Para reconstruir a trajetória trágica de Sandro, a mesma de tantos outros meninos negros pobres do país, “Última parada 174” tece a linha narrativa por meio da mãe do rapaz.
— Eu fui conhecê-la, estive em sua casa. Foi uma experiência muito dura, era uma pessoa deprimida, triste. — conta Mantovani, que foi indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado por “Cidade de Deus” e trabalhou com Padilha nos dois “Tropa de elite”. — Uma casa simples, toda arrumadinha. E ela, muda. Me senti muito mal, invadindo, quase metaforicamente violando aquela pessoa para que ela me contasse mais sobre algo muito doído para ela. Saí dali me sentindo como o pior dos seres humanos. Então, partimos para a ficção rasgada e inventamos aquela história. Usamos a realidade para enriquecer a ficção.
'Sempre o vi mais como vítima'
O sequestro do ônibus 174 completa 20 anos em um momento em que o mundo foi tomado por manifestações contra o racismo após a morte de George Floyd, nos EUA. Pouco antes, no Rio, outra vítima foi o menino João Pedro. Ambos negros assassinados em ações policiais.
— O racismo atravessa tudo em nossa sociedade. Em relação ao Sandro, não acho absurdo supor que, se ele fosse branco, talvez as coisas não tivessem acontecido como aconteceram. É o que ocorreu com o George Floyd, aquilo não é uma exceção — lamenta Mantovani. — Uma pessoa que cresce num ambiente extremamente violento, que não conhece amor, pode acabar se comportando assim. Sempre vi o Sandro mais como vítima do que como assassino.
Padilha, que mora nos EUA, avalia a maneira como os assassinatos de Floyd e João Pedro foram tratados, lá e no Brasil:
— Os EUA e o Brasil são os dois países mais racistas que conheço. São também os países que mais escravizaram. Mas não são iguais. Quantos jovens negros são mortos por policiais todos os dias no Brasil? Quantos são executados na frente de câmeras de TV, como foi o Sandro, ou de celulares? E, no entanto, isso não gera os mesmos protestos.
'Embrião do que vivemos agora'
Para Barreto, “o episódio (do ônibus 174) foi um embrião do que estamos vivendo agora”:
— Eu vivia em Los Angeles quando o Rodney King foi brutalmente agredido pela polícia (em 1992), vi de perto os protestos. Agora tem um componente que as pessoas estão com o nervo ainda mais à flor da pele por causa da pandemia. É uma tempestade perfeita. É preocupante, mas positivo. Mudanças estão a caminho.
E qual é o lugar da arte neste contexto de transformação social?
— Tenho essa conversa às vezes com minha mulher (a também roteirista Carolina Kotscho), sobre a sensação de inutilidade do nosso trabalho. Diante da realidade, é um tiro de espoleta — diz Mantovani. —Meus filmes não vão mudar o mundo. As coisas mudam com mobilização social e novas leis.
Mas há razões também para algum otimismo, diz Mantovani, embalado, por exemplo, na percepção de que há mais roteiristas negros no país, “coisa que não existia”:
— Não podemos perder o desejo de melhorar as coisas. E o cinema pode dar uma ajudinha.