Elza Soares, 90 anos: É a minha raça que estou vendo ser destruída, é preciso dar um grito de basta
Isolada em seu apartamento, em Copacabana, cantora lança gravação de Juízo final, samba de Nelson Cavaquinho, e a inédita Negão negra, um libelo contra o racismo no Brasil
Por O Globo18/06/2020 08h08
"O Brasil é o país mais racista que nós temos. A coisa aqui é braba, uma doença que não tem cura, uma situação absurda, nojenta. É a minha raça que estou vendo ser destruída, e é preciso dar um grito de basta”, diz Elza Soares, às vésperas de completar 90 anos de uma história marcada por sacudidas de poeira e voltas por cima.
Voz-símbolo na luta contra o racismo, o machismo e tantas outras persistentes covardias da vida brasileira, a cantora conta que sentiu na carne as mortes da menina Ágatha Félix (baleada em setembro passado quando voltava para casa com a mãe, no Complexo do Alemão) e do adolescente João Pedro Matos Pinto (alvejado por um tiro em maio, dentro de casa, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo).
— Nos Estados Unidos, mataram um homem negro e o mundo veio abaixo. Aqui parece que é brincadeira. Rezo muito para que isso não chegue aos meus sobrinhos e meus netos — diz a intérprete de versos como “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.
Aniversários vários
Elza conversou com O GLOBO por telefone, depois que a neta Vanessa atendeu à ligação. E foi logo avisando:
— Não sou muito apegada a aniversário, não. É o que eu digo sempre: esquece esse, outros virão.
Sua data de nascimento, controversa, já virou folclore. No livro “Elza” (2018), o biógrafo Zeca Camargo alertava: “Como aprendi nessa convivência, essa é uma questão menor — 23 de junho de 1930? 1931? 1935? A idade não importa.” Já a Deck, gravadora da cantora, esclarece em press release: “O aniversário da Elza é sempre comemorado em várias datas, sendo dia 22 de julho o dia do seu nascimento e 23 de junho a data que consta em seu documento quando foi emancipada. De qualquer forma, a data correta e sua idade são o que menos importa.”
Sendo assim, a partir da próxima terça-feira estão liberadas as comemorações dos (primeiros) 90 anos de Elza Soares. E a festa ganha trilha nova. No dia 26, ela lança uma nova versão de “Juízo final”, samba de Nelson Cavaquinho, em ritmo de rock industrial. Um mês depois, sai a inédita “Negão negra”, parceria de Flavio Renegado e Gabriel Moura, na qual Elza divide com Renegado duros versos sobre racismo, como “pra cada um que cai, choramos rios e mares/ mas nunca calaram as nossas vozes, milhares” (confira a íntegra da letra abaixo).
Ano passado, ela lançou pela Deck o álbum “Planeta fome”, o primeiro depois da celebrada dobradinha formada por “A mulher do fim do mundo” (2015) e “Deus é mulher” (2018), discos marcados por parcerias com jovens compositores da cena paulistana que foram sucesso de público e crítica.
— Mal eu fiz o disco e acontece tudo isso... O planeta está com fome! — diz. — Será que a Humanidade aprende alguma coisa depois desse castigo, dessa surra (da pandemia)? Tem que melhorar! Com todo mundo trancafiado dentro de casa, as praias vazias, não é possível que as pessoas não aprendam. Os professores do Universo nos deram uma lição muito boa como dever de casa.
Elza passa a quarentena em seu apartamento, em Copacabana.
— Tenho que dar graças a Deus porque estou em minha casa e não no hospital. Tô aí. O palco faz falta, o público faz falta, mas quando eu entro em casa, eu fico em casa. Estou aproveitando para descansar o corpo e a cabeça, porque, quando começo a trabalhar, não paro. Esse foi o tempo que Deus me deu para descansar.
Hora do ‘Juízo final’
Nada mais oportuno, ela diz, do que lançar “Juízo final” agora. Com o Brasil e o mundo atravessando “este período drástico”, cai bem cantar “o momento em que o bem vence o mal, uma música clara, além de muito bonita”.
— É disso que a gente precisa: que o sol volte a brilhar — espera a cantora, que foi bem próxima de Nelson Cavaquinho (1911-1986), poeta da dor imortalizado em sambas como “A flor e o espinho”, “Folhas secas” e “Notícia”. — Quando o Nelson tomava os pileques brabos, ele ia se esconder na minha casa. Ele dizia: “Vou chegar em casa, a nega não vai me deixar entrar, deixa eu ficar aqui...”
Enquanto o sol não volta, Elza trata de cuidar do corpo, ter cautela, não se aborrecer, manter a fé e rezar. Mas o palco não é a única saudade em tempos de isolamento por causa da pandemia de Covid-19:
— Você sabe do que eu sinto falta? Dos estudantes na rua. Eles fechavam tudo e acabavam com a bagunça. Hoje a gente não tem mais estudantes na rua, não tem mais ninguém na rua... Está todo mundo amedrontado.
E no momento em que se “fala de racismo com sede de falar”, ela canta no samba-trap “Negão negra”:
“Sempre foi luta/ sempre foi porrada/ contra o racismo estrutural/ barra pesada.”
Confira a letra da canção inédita 'Negão, negra', de Flavio Renegado e Gabriel Moura