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Iphan comemora 20 anos de política pioneira do patrimônio
Projeto tocado pelo órgão influenciou a Unesco e já registrou 48 bens culturais intangíveis em todo o país
Mesmo sem prestígio na estrutura do governo, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) se agarra nos motivos que tem para comemorar. O órgão, que há três meses e meio recebeu críticas do presidente Jair Bolsonaro durante uma reunião ministerial, e vem sofrendo com demissões de funcionários de longa carreira técnica, celebra hoje os 20 anos do decreto 3.551, que
instituiu a Política de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial do Brasil.
O projeto, pioneiro no mundo, inspirou a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) a aprovar medida similar para identificar e proteger as múltiplas expressões populares que são bens imateriais da Humanidade. No Brasil, são bens como o acarajé da baiana, a roda de capoeira, a Festa do Senhor Bom Jesus do Bonfim, o Complexo do Boi Bumbá e o Bembé do Mercado, celebração centenária de matriz africana em Santo Amaro da Purificação.
Apesar da reclamação do presidente, que afirmou que “o Iphan para qualquer obra no Brasil” — o comentário foi sobre a paralisação, no Rio Grande do Sul, de uma obra do amigo e empresário Luciano Hang, dono da Havan, num local onde havia sido localizado material de interesse arqueológico —, o instituto celebra uma política que já registrou 48 itens que denotam a diversidade e a pluralidade cultural do país.
— A primeira iniciativa de tentar fazer com que as manifestações da cultura popular e do folclore fossem celebradas como bens imateriais foi na década de 1930, com projeto de Mário de Andrade. Como folclorista, ele tinha uma visão de patrimônio muito ampla já naquele tempo. Ele se preocupava com a valorização da cultura popular e folclórica brasileira — conta Hermano Queiroz, diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) do Iphan.
Preconceito
As propostas do escritor modernista serviram de inspiração, já nos anos 1970, para o trabalho do Centro Nacional de Referência Cultural e da Fundação Nacional Pró-Memória, sob comando do designer e pintor Aloísio Magalhães. Incluído na Constituição de 1988, o tema seria consolidado 11 anos mais tarde na Carta de Fortaleza, documento que originou a criação do decreto.
— A arte popular é viva, mas muitas sofrem preconceito por serem de tradição minoritária, como africana e indígena. Por isso os folcloristas tentaram deslocar o olhar patrimonial das coisas para as pessoas. Eles entendiam que isso também englobava as tradições, saberes e manifestações populares — comenta Queiroz.
Do Brasil, entre os 549 itens listados até hoje pela Unesco, seis bens foram declarados como Patrimônio Imaterial da Humanidade: o samba de roda do Recôncavo Baiano, a Arte Kusiwa (pintura corporal e arte gráfica Wajãpi), o frevo, a roda de capoeira, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré e o Bumba Meu Boi.
— A política de patrimônio imaterial assume a responsabilidade de fazer um plano de salvaguarda para que aquela celebração, aquele fazer e aquele conhecimento continue dinâmico. No material, você quer que o objeto fique como era originalmente, a representação de uma época. O imaterial é diferente, é a alma das cidades, dos povos, desses bens materiais — explica Célia Corsino, ex-diretora do DPI.
Se 48 bens registrados parecem pouco em 20 anos, o processo para a escolha e salvaguarda das atividades — divididas em quatro livros de registros: dos saberes, das celebrações, das formas de expressões e dos lugares — prova que o número é expressivo.
— Todo bem registrado vem auxiliado por uma pesquisa documental, histórica e etnográfica. Isso gera um dossiê que levanta fontes, referências e trabalho de pesquisa de campo — afirma o antropólogo do Iphan Rodrigo Ramassote.
'Trabalho fundamental'
No estado do Rio, sete itens foram listados pelo Iphan: jongo, ofício das baianas de acarajé, matrizes do samba (partido alto, samba de terreiro e samba-enredo), roda de capoeira, ofício dos mestres de capoeira, festa do Divino Espírito Santo de Paraty e literatura de cordel.
— O grande avanço do registro é redimensionar essa política de salvaguarda indo além do tombamento. É algo que pensa na cultura brasileira de maneira mais ampla, no que você come, a roupa que veste, o artesanato que faz. É um trabalho fundamental — exalta o historiador e escritor Luiz Antonio Simas, que vê outras manifestações cariocas como candidatas a bens imateriais. — A festa de São Jorge, com a alvorada de fogos, as rodas de samba, a ocupação do bairro de Quintino. E também o festejo de São Cosme e Damião, a roupa dos bate-bolas, o jogo de bola de gude, da pipa.
Na lista do Iphan de bens imateriais em processo de instrução para registro estão itens como as congadas de Minas, o choro, o repente, a ciranda do estado de Pernambuco, o Kenê Kui (grafismos do povo indígena Huni Kui) e as matrizes do forró.
Manter e cuidar dessas tradições pode ser ainda mais complicado com as mudanças da maré política. Na mesma reunião do dia 22 de abril, Bolsonaro também disse a seus ministros: “Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô!”.
— Enquanto o Hang reclamava para o presidente do empreendimento dele, a gente estava preocupado com a história da Humanidade. Se aquele material se perde, cairia no esquecimento para sempre — diz Kátia Bogéa, ex-presidente do instituto, no qual trabalhou por 38 anos.
Questão ideológica
Kátia foi demitida por Bolsonaro em dezembro. Para o seu lugar, o governo indicou a turismóloga Larissa Peixoto, sem experiência na área de preservação de patrimônio. No início de junho, a nomeação de Larissa, que havia assumido dia 11 de maio, foi suspensa pela Justiça Federal por ser “incompatível — e até contraposta” ao posto. Uma semana depois, a decisão foi derrubada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2).
Kátia diz que o governo, que em maio transferiu o Iphan para a estrutura do Ministério do Turismo, está retirando todos os técnicos dos cargos de direção, guiado por “questão ideológica muito forte”:
— Ele não faz nenhuma iniciativa de políticas públicas voltadas para esta pluralidade cultural que está protegida pela Constituição. E agora vemos técnicos do mais alto gabarito sendo afastados, como o Marcelo Brito (ex-diretor do departamento de de articulação e fomento do órgão). Não se pode olhar para nosso patrimônio como se fosse turismo.