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Alagoano estreia na SPFW: coleção traz fuxico e crochê em cenário às margens do Velho Chico

A coleção O Arraial, do designer maceioense Antônio Castro, traz elementos do sertão alagoano de forma sustentável e será apresentada em formato de fashion film, no dia 24 de maio, em shopping da capital paulista

Por Evandro Souza e Natália Brasileiro* 06/05/2023 10h10 - Atualizado em 06/05/2023 12h12
Alagoano estreia na SPFW: coleção traz fuxico e crochê em cenário às margens do Velho Chico
Filme foi inteiramente gravado na Ilha do Ferro, situada no Sertão alagoano - Foto: Reprodução/Instagram

A maior semana de moda da América Latina, a São Paulo Fashion Week, será realizada de 24 a 28 de maio. Esta edição contará com 42 desfiles, sendo que 31 deles serão presenciais, enquanto os outros 11 terão o formato de fashion films. Um destes filmes marca a estreia do alagoano Antônio Castro, no dia 24, com sua marca FOZ, ao lado de nomes de peso, como Glória Coelho e À La Garçonne.

Após duas edições digitais, a SPFW vai celebrar a moda brasileira em formato híbrido. Os chamados fashion films, em tradução livre  "filmes de moda", são vídeos utilizados pelas marcas de moda para apresentar a estética, ideias e conceitos da coleção de uma marca, sendo uma espécie de curta-metragem. As maiores grifes de moda do mundo já produzem fashion films há alguns anos, porém, somente após a pandemia esse formato começou a fazer parte das semanas de moda. Também não podemos negar o impacto das novas mídias digitais, como o Instagram e TikTok, onde a produção de vídeo ganha bastante destaque e faz com que o algoritmo dite tendências.

A nova coleção da FOZ, nomeada O Arraial pt2. será apresentada no formato de fashion film, gravado no povoado da Ilha do Ferro, em Pão de Açúcar, Sertão de Alagoas, e promete um novo olhar da própria marca, com cores e elementos ainda não trabalhados no ateliê. Serão adicionadas cores mais vibrantes, novos tecidos e novas tipologias de artesanato como o crochê, fuxico e o patchwork, técnica esta que consiste na junção de pedacinhos de tecido através de pontos para formar uma peça maior. Esses elementos são típicos do artesanato local na utilização de almofadas, toalhas de mesa, e agora podem ser incorporados nas roupas, de maneira contemporânea, que abraça a cultura local e faz a arte escoar por caminhos que não aqueles já traçados.

Em entrevista ao Jornal de Alagoas, Antônio Castro conta que a oportunidade de integrar o line-up do evento já vinha sendo debatida há algum tempo e outras pessoas do setor, além de clientes, acreditavam que a FOZ estava pronta para realizar um desfile e fazer parte da semana de moda que, nas palavras do designer, ainda é a plataforma de maior visibilidade para as marcas no Brasil.

Designer Antônio Castro. Foto: Felipe Russo.



Antônio conta que o responsável por abrir portas no ainda restrito mundo da moda e levá-lo à SPFW foi o Nordestesse, projeto de impulsionamento de marcas e criadores nordestinos encabeçado por Daniela falcão, ex-diretora da Vogue Brasil. Com a vitrine dada pelo Nordestesse diversas marcas, incluindo a FOZ, conseguiram um braço comercial em outros lugares do Brasil para além daqueles onde elas já estavam enraizadas.

"Essa oportunidade aconteceu através da Daniela, que criou essa ponte pra gente receber o convite de integrar o line-up do São Paulo Fashion Week. Agora a gente estreia com o fashion film, mas daqui pra frente fazemos parte do line-up oficial da semana de moda, do calendário nacional", comemora Antônio, explicando ainda que a partir de agora a FOZ desfila em todas as temporadas do evento.

"A cada temporada a gente vai desfilar, seja no digital ou no físico, o fashion film é a nossa porta de entrada, mas em novembro a gente já vai pro físico", completou.

O sertanejo e o genuíno São João


O fashion film da FOZ conta a história da nova coleção da marca, porém por uma outra perspectiva. O filme que será lançado na SPFW visa representar o clima da região no mês de junho, época das festas juninas, tradição secular comemorada no Nordeste brasileiro.

"A ideia vem de representar um São João de fundo de quintal, uma festa de São João que não é exatamente uma festa, mas que é talvez o clima no ar no mês de junho. Eu acho que todo mundo que vivencia isso de perto sente a mesma coisa", elaborou o artista, explicando ainda que a intenção nunca foi mostrar o São João televisivo que as pessoas já conhecem, mas sim o que há de mais genuíno e profundo na comemoração, junto ao humor do povo sertanejo durante o período.

A terceira entrada da coleção atual, "O Arraial", foi lançada no mês de janeiro. Foto: Felipe Russo.


Quando perguntado o por quê da escolha do local para cenário da apresentação da marca, Antônio conta que a ideia era representar um povoado do interior do nordeste, mas a Ilha do Ferro foi escolhida porque os olhos de todos têm se voltado muito para esse pedaço do Sertão alagoano, na beira do Rio São Francisco, que traz em sua gente os traços de um povo resiliente que se reinventa através da cultura.

Com pouco mais de 500 habitantes, a Ilha do Ferro é um reduto do charme, cultura e arte popular, conhecido pelo artesanato, principalmente em madeira, berço de artesãos talentosos e que estão ganhando cada vez mais espaço, fazendo do povoado cenário de diversas campanhas de outras marcas.

"O que a gente sempre vê muito representado é o artesanato, não o povo. São representados os cartões postais da Ilha do ferro, mas não necessariamente o barzinho da beira do rio, que é onde o artesão bebe, a casa do artesão, a vida do artesão para além do artesanato", disse, demonstrando o diferencial que o filme apresenta, onde o artesanato aparece quase como um coadjuvante e os protagonistas são os personagens que vivem ali.

O diretor do fashion film, o também alagoano Paulo Accioly, reuniu as margens do Velho Chico modelos e artistas do estado para dar vida às peças e contar essa história, que é um desdobramento da coleção, em contato com seu povo, cultura, tradição, trazendo um olhar global para os costumes sertanejos, mas, num caminho inverso, levando o sertão e o clima junino em Alagoas para o mundo ver. E vestir. 

O Arraial pt. 2


A primeira parte da coleção O Arraial trouxe elementos juninos, lançada em outubro de 2022, com tons claros e iluminados, com conceito que parte do viés do São João de Alagoas. A coleção contou com a parceria de artistas alagoanos, como o artesão Eduardo Faustino .

A segunda parte da coleção é voltada para o "fundo de quintal" que é apresentado no fashion film, com o conceito de trazer a sensação do clima do mês de junho. Com isso, há um casamento com o conceito do filme e o artesanato presente de forma menos rebuscada, pois são consideradas academicamente menos tradicionais por não serem heranças coloniais ou originárias, como o fuxico, patchwork e o crochê.

Peças da terceira entrada da coleção "O Arraial", lançadas em janeiro. Fotos: Felipe Russo.


Segundo Antônio, estamos acostumados a "olhar de dentro", o que fez com que ele resolvesse fazer o oposto e tentar enxergar o estado através dos olhos de alguém de fora: "Qual seria a visão que uma pessoa de fora teria do que é o estado de Alagoas, o artesanato alagoano, da exuberância que a gente tem nas mãos e que muitas vezes não enxerga justamente por estar dentro do contexto".

A nova versão proposta pela marca é trazer um olhar mais noturno e introspectivo. A marca tem uma característica mais solar e leve, o próprio designer caracteriza como uma roupa para o “sábado de manhã". A segunda fase da coleção que será apresentada na SPFW contará com uma nova perspectiva, mantendo sua essência leve, ela traz para a fashion week “o cair da noite”.

Com tons mais quentes, proposta inédita na FOZ, a nova coleção terá um vermelho mais vivo e pela primeira vez a marca terá peças na cor preta, que caracteriza mais a estética noturna pretendida pelo artista com a coleção O Arraial pt.2. O brilho também não poderia faltar na coleção, materialidades mais sintéticas também estão presentes nas roupas.

Antônio caracteriza essa segunda parte do arraial como uma coleção mais madura, desprendendo de conceitos que ele acreditava.

"Acho que estou também me desprendendo um pouco talvez das amarras que eu tinha em relação ao que eu considerava belo ou ao que eu considerava identidade da marca, entendendo como a gente pode evoluir dessa forma. Acho que é uma coleção mais madura”, explica Antônio.

Ao levar para a SPFW um trabalho produzido todo por mãos alagoanas, o designer revela sentir que está cumprindo exatamente com o que sempre se propôs a fazer, desde o nascimento do projeto: criar um espaço de visibilidade para artesões talentosos.

"Sempre quis criar uma plataforma de protagonismo para as pessoas que eu acredito, amigos que conheço há muitos anos e que eu sei como são talentosos, mas que talvez não tenham tido as mesmas oportunidades que eu, que foi de poder morar em são Paulo e eventualmente abrir a minha marca, ainda que de uma maneira muito pequena e independente", explica.

Sustentabilidade


O futuro se encaminha para a sustentabilidade, cada vez mais presente em diversas áreas do cotidiano que antes não eram tão vistos, e na moda não é diferente. A moda sustentável consiste em considerar o impacto ambiental, social e econômico da produção de roupas, acessórios e calçados.

Os novos artistas já encaram a sustentabilidade não como um diferencial, mas como uma condição da marca. "Então você dizer que a marca tem uma preocupação com o meio ambiente ou com a sustentabilidade não é mais um diferencial. É a mesma coisa que dizer, 'a minha roupa tem qualidade', isso é o mínimo, né? Isso é uma obrigação", explica Antônio.

A FOZ se preocupa com o impacto social, cultural e econômico da marca. Fotos: Felipe Russo.



Não tão distante temos a crise dos Yanomami, população indígena que teve sua saúde e habitação afetadas pelo desmatamento e garimpo na região. Recentemente um inquérito da Polícia Federal indicou a compra de ouro ilegal por uma marca de acessórios. Contraponto a isso, a FOZ tem matéria prima certificada, além de fazer o mapeamento da cadeia produtiva e certificar que todos os prestadores de serviço são bem pagos justamente. Segundo Antônio, essas ações são mínimas e intrínsecas a uma marca.

"Comprar tecidos certificados, comprar aviamentos certificados, traquear toda a nossa cadeia produtiva, saber quem tá fazendo, em que condições tá fazendo, se certificar de que todos os prestadores de serviços são bem pagos e pagos justamente com base no piso salarial, tudo isso é o mínimo", destaca Antônio.

A FOZ traz em seus pilares o social e o cultural, com o olhar para o trabalho manual e artesanal, transformando isso em potencial econômico para artistas alagoanos. Além disso, o trabalho consiste em buscar alternativas que até então eram pouco vistas no artesanato local, com a criação de roupas que abracem os saberes e fazeres dos artistas da terra, tendo um impacto social, cultural e econômico.

Formato híbrido


O alagoano disse acreditar que o formato híbrido consegue ser um pouco mais justo com marcas menores que talvez não tivessem a possibilidade de apresentar dois desfiles por ano: "Ele te dá uma possibilidade de apresentar o projeto e a coleção sem o custo e energia investidos em um desfile físico. A semana de moda híbrida consegue criar essa possibilidade das marcas não precisarem efetivamente fazer dois desfiles por ano, tornando tudo muito mais justo".

O designer conta ainda que saber qual era o momento de investir no formato, que exigiria bastante dedicação, sempre foi uma de suas inseguranças, pois o mesmo sempre quis ter uma marca direcionada pra o impacto socioeconômico dos grupos com os quais ele se compromete.

"Tentei ser bastante pé no chão em relação a isso, muitas vezes vemos marcas de pequenos criadores que se dedicam demais a criar uma imagem incrível da marca, mas acabam não tendo um retorno comercial necessário para a sustentabilidade financeira daquele projeto”.

A coleção será apresentada dia 24 de Maio, com uma sessão especial de cinema para convidados no Shopping Iguatemi, que reunirá os fashion films: À La Garçonne, ÀLG, Ateliê Mão de mãe, Corcel, De Pedro, Fauve, Foz, Glória Coelho, Irrita, Modem e Naya Violeta.

FOZ


A marca fundada em 2020 durante o período pandêmico do novo coronavírus traz a ancestralidade e cultura do artesanato tradicional brasileiro. O próprio Antônio intitula a marca como "roupa para vestir no sábado de manhã" com elementos solares, leves e tecidos frescos, aliado a técnicas contemporâneas.

*Estagiários sob supervisão