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Promotora cobra criação de mecanismo estadual de combate à tortura em Alagoas

Segundo ela, o modelo garante uma estrutura adequada para prevenir e reprimir a prática de tortura no estado, tanto em ambientes públicos como privados

Por Ruan Teixeira 04/02/2023 07h07 - Atualizado em 04/02/2023 10h10
Promotora cobra criação de mecanismo estadual de combate à tortura em Alagoas
Karla Padilha, promotora de Justiça responsável pela Promotoria de Controle Externo da Atividade Policial de Maceió - Foto: Reprodução

Após denúncias de casos de tortura no Sistema Prisional alagoano virem à tona, a promotora de Justiça responsável pela Promotoria de Controle Externo da Atividade Policial de Maceió, Karla Padilha, cobrou a criação, em Alagoas, do Sistema de Prevenção e Combate à Tortura, semelhante ao modelo nacional, para coibir essa prática no estado.

A promotora conta que, em reunião, no gabinete do governador Paulo Dantas (MDB), foi apresentada uma minuta para criação do Sistema Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Segundo ela, o modelo nacional garante uma estrutura adequada para prevenir e reprimir a prática de tortura no estado, tanto em ambientes públicos como privados.

“Infelizmente até agora esse projeto não foi encaminhado para o Legislativo, e lá se cria o comitê e se cria o mecanismo estadual. A ideia é de que pessoas independentes sejam responsáveis por realizar visitas às unidades de privação de liberdade para poder detectar essas práticas de tortura”, contou.

Segundo Padilha, o governador mostrou extrema simpatia sobre a criação desse sistema estadual e que ele seja efetivamente implementado em Alagoas, “pois daí terão um observatório muito mais adequado para a temática da tortura”.

“Eu tenho informações inclusive que o legislativo teria autorizado o executivo a durante seis meses criar cargos e tudo mais no âmbito do executivo. Então, seria excelente que o governador sensibilizado com a importância dessa temática e até para validar, digamos assim, a sua atuação e sem qualquer tipo de restrição no combate a essa prática abominável, pudesse adotar medidas visando a criação desse sistema estadual de prevenção e combate a tortura. O projeto de lei foi entregue a ele pelo Ministério Público Federal - MPF, pelo Ministério Público Estadual, eu estava presente, pela OAB, mas infelizmente até hoje isso não foi concretizado”, lamentou.

Secretaria nega casos


A Secretaria de Estado de Ressocialização e Inclusão Social (Seris) divulgou, em 24 de janeiro, que os presídios do Estado não registraram casos de tortura entre 2021 e 2022, segundo um relatório da Pastoral Nacional do Cárcere (PNC). A OAB Alagoas e a própria PNC rebateram a informação. A OAB, inclusive, em entrevista ao Jornal de Alagoas, apontou diversos casos dessa prática dentro do sistema prisional nesse mesmo período.

Para a promotora Karla Padilha, “dizer que não há tortura em Alagoas é no mínimo questionável".

“Eu não posso tapar o sol com a peneira, dizermos que não existe tortura em Alagoas, é no mínimo questionável. Pois seria afirmar que nós estamos em um paraíso no Brasil, porque em todas as unidades do país aqui acolá, acumulam episódios de torturas”, disse. Em entrevista realizada na sede da promotoria, no bairro do Barro Duro, em Maceió, assim como a OAB, ela discorda veementemente da informação da Seris.

Silenciamento


Karla acredita que existe uma cultura do silenciamento em relação ao público vítima de sistemas prisionais no Brasil e mundo afora, afirmando que conseguir provas para condenação por tortura é mais complicado, pois os muros dos sistemas prisionais parecem ou tornam mais precárias as possibilidades de chegar à imaterialidade, comparando aos policiais civis e militares do dever legal. “Existem os abusos, existem os excessos, tanto é que eles chegam para gente. Agora, muitos deles você sabe que aconteceu o fato, mas você não consegue condenação, uma punição, porque falta às vezes a confissão da vítima, às vezes falta uma prova documental que é um exame de lesão corporal, ou um exame qualquer que possa comprovar aquilo, e ninguém pode ser condenado se não houver provas suficientes para isso”, explicou, destacando que prefere não apontar nomes e responsáveis pela situação, que é real, atual, passado, presente e futuro.

O presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Alagoas, Roberto Moura, afirmou que as afirmações da secretaria em nada condizem com a realidade e, segundo ele, o relatório da PCN, informa que não chegaram até eles denúncias de tortura, mas isso significa que elas não existam.

Ele enviou para o Jornal de Alagoas documentos, imagens e relatos de casos em que presidiários e reeducandos foram torturados ou sofreram maus-tratos durante o período em questão. O material foi coletado durante visitas de advogados alagoanos nos presídios do estado.

Como, por exemplo, em 2021, mês de maio, o caso de um idoso de 62 anos foi torturado no Presídio de Segurança Máxima (PSM 1), e outro no Núcleo Ressocializador da Capital e no PSM 2.

Já no ano passado, um reeducando recebeu disparos de elastômero (balas de borracha) nas nádegas. No mês de setembro, no Presídio do Agreste houve disparo de elastômero em reeducando sem justa causa, considerando, para a OAB, que o reeducando não apresentava riscos para terceiros e nem para si.

No relatório dos anos de 2021 e 2022, são totalizados 23 óbitos em penitenciárias alagoanas, sendo 7 mortes violentas e em 2022, 4 mortes por causa indeterminada. Em 2021, não constam óbitos por causa indeterminada.

Moura disse que os presídios alagoanos estão longe de zerar as práticas de tortura, violência e agressão. ''Na verdade, a assessoria da Seris faz o uso do que chamamos na criminologia de cifras ocultas da criminalidade. Enfim, é bastante oportunista a tentativa de suscitar que não houve tortura, ainda mais isso sendo utilizado pelo estado de Alagoas como propaganda de uma suposta boa prática do sistema prisional, quando na verdade é o inverso, isso de maneira consubstanciada pelo próprio Grupo de Monitoramento e Fiscalização do TJ/AL”, completou. 

Promotoria define Estado como responsável


Karla Padilha diz que, no entendimento da promotoria esse tipo de crime por sua gravidade e pelo fato de considerarem o preso uma pessoa vulnerável, o Estado é o maior responsável por ele.

Ela frisa que entende que o Ministério Público de Alagoas - MPAL, é a entidade especializada, que teria atribuições para apurar esses crimes. A promotora diz que fez uma recomendação para que todos esses crimes sejam migrados para investigação na delegacia de vulneráveis, que funciona no Complexo de Delegacias, na Mangabeiras, parte baixa da capital alagoana.

“Lamento que a recomendação não tenha sido acolhida no âmbito da Polícia Civil”, afirma, dizendo que é preciso dar estrutura adequada para que os policiais civis consigam dar conta de todas as demandas.

Promotoria de Justiça de Controle Externo da Atividade Policial


Padilha explica, sobre a promotoria de controle externo da atividade policial, comandada por ela, que existe uma atuação junto a todos os órgãos de segurança pública, incluindo-se também a polícia penal - antigos agentes penitenciários. Porém, nos presídios e em casos que acontecem no interior do estado, os casos são de atribuição do promotor de justiça local.

Além da atribuição de controle externo da atividade policial até quinze dias atrás, Karla era presidente em exercício do comitê estadual de prevenção e combate à tortura, entidade que conta com a presença da OAB, da Defensoria Pública, da própria Secretaria de Segurança Pública (SSP) e de vários órgãos do Conselho Regional de Psicologia e outros órgãos que debatem essa temática da tortura.

A promotora também diz que trabalha com várias outras preocupações relacionadas à violação de direitos humanos, pois responde também pela 61ª promotoria que trata da defesa dos direitos humanos.

“Muitas vezes essas notícias de tortura não nos chegam, não chegam nem ao Ministério Público, nem a pastoral carcerária, nem a OAB eventualmente durante visitas e inspeções que são feitas nessas unidades prisionais o fato aparece. Eu pessoalmente participei inspeção técnica realizada pelo mecanismo nacional de prevenção e combate a tortura que veio a Maceió realizar uma visita em todo o sistema prisional. Eu tive a oportunidade de participar da visita como convidada do mecanismo, esse relatório trouxe um enorme número de ilegalidades e de impropriedades detectadas dentro do sistema prisional, inclusive ele foi entregue ao procurador geral de justiça e foi encaminhado ao governador do estado, ao secretário de ressocialização e a muitas outras autoridade”.

Em fevereiro, será realizado um novo relatório com informações sobre o sistema carcerário local, com informações específicas sobre cada unidade.

“Eu recebi pelo menos uma notícia vinda da OAB no qual dava conta de dois episódios de tortura ou de suposta tortura, porque a gente só vai dizer que houve depois da apuração. Uma relacionada ao presídio do Agreste relação a um preso que tinha inclusive uma bolsa de colostomia e aí essa nós encaminhamos para o promotor de lá e outra relacionada ao Baldomero Cavalcante que envolvia o então diretor do presídio que eu não sei se tá mais diretor que é policial penal em desfavor de uma de uma pessoa que tem inclusive nome social e que estava quando da visita nossa estava lotada na ala LGBTQIAP+”, afirmou.

Como denunciado pelo presidente da OAB, a notícia de casos de tortura em Alagoas e, requisitou a instauração de inquérito policial para o delegado geral e encaminhou para a Seris, para que através da corregedoria eles apurarem o fato administrativamente. “Eu não recebi nenhuma resposta nem outra”, lamentou.

E reitera que os casos resolvidos devam ser informados à promotoria por parte do secretário de segurança, Flávio Saraiva e do delegado geral, Gustavo Xavier.

“Tortura não é somente lesão física, ostensiva, você pode ser torturado por privação de alimento, você pode ser torturado por condições indignas de viver, não ter condições de dormir em uma série de outras questões que podem implicar na prática de tortura. Não é só uma conduta ativa, comissiva, pode ser uma conduta também omissiva”.

Ela concluiu afirmando que não é verdade dizer que não há tortura, pois “provavelmente existem sim práticas de tortura, como existe em todo o sistema prisional mundial. Agora, a gente não pode apontar o dedo nem responsabilizar A ou B antes das apurações cabíveis”.

Atuação da promotoria em Maceió


Segundo Padilha, a atuação da promotoria da capital é maior. Pois ainda segundo ela, recebe todos os dias notícias de tortura, que vem, por exemplo, da audiência de custódia. “Às vezes não é nem tortura, a um outro fato que nós vamos atuar também. O que é que acontece? Muitas vezes não se consegue a condenação por tortura em razão dos laudos feitos pelo Instituto Médico Legal - IML onde não se apontam objetivamente para lesões caracterizadoras de uma suposta tortura, fica simplesmente na lesão corporal. E em razão disso nós estamos minutando uma recomendação criando quesitações específicas que vão otimizar essa aferição pelo médico legista na hora que ele está examinando preso pra ele verificar se aqueles sinais são sinalizadores de tortura. E isso é fundamental”, frisou.

“Isso foi feito inclusive com o auxílio de médicos legistas de outros estados para que possamos, cumprir o que diz o protocolo de Istambul a respeito da obrigação do dever de todo Estado, de prevenir e reprimir a tortura”. O protocolo de Istambul é um Manual sobre Investigação Eficaz e Documentação da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, comumente conhecido como Protocolo de Istambul, é o primeiro conjunto de diretrizes internacionais para a documentação da tortura e suas consequências.

Ela destaca também que cada caso é necessário uma averiguação, porque às vezes eles podem estar diante de um simples argumento por parte do preso para tentar descaracterizar a validade do flagrante, ou seja, terão que contrapor a fala do preso com o exame de lesão corporal onde se verifique se aqueles sinais de de lesões possam ter sido praticados excedendo a necessária repressão, que às vezes “o cara ofereceu resistência e a polícia precisa chegar com firmeza”. “E aí é possível que haja alguma lesão. Mas às vezes é uma agressão deliberada e desnecessária por parte da polícia, apesar de que existe a tortura psicológica, essa a gente não consegue avaliar com um mero exame, por isso que era importante, a gente também vai colocar isso na recomendação que tenham profissionais da psicologia e também da psiquiatria pra avaliar esse preso que ele é encaminhado ao IML pra pra pra verificar se de fato ele sofreu algum tipo de abuso”.

A promotora exemplifica dizendo que se o preso passa dois dias sem dormir, também é um tipo de tortura, mesmo que não haja lesão nenhuma no rosto dele. “Simplesmente muito barulho, muito barulho pra que ele não consiga descansar, isso gera confusão mental e ele pode ser a inclusive ser levado a confessar por algo que não tenha praticado para se livrar daquele sofrimento".

Karla ressalta que já existe uma resolução aprovada em unanimidade pelo Conselho Superior do Ministério Público, criando um Núcleo de Controle externo. De acordo com a criação deste núcleo não foi concretizada devido a falta de orçamento.

“Esperamos esse ano que entre em pauta, porque ele vai possibilitar a criação de uma atuação, no controle externo, mais padronizada no estado inteiro. Porque às vezes uma coisa que acontece lá em Coité do Nóia, lá em em Girau do Ponciano, lá em União dos Palmares e se não houver uma atuação padronizada, às vezes a gente não consegue dar conta porque o promotor do interior ele é um clínico geral, ele atua em todas as áreas”, detalha.

Vale destacar que a promotora Karla Padilha só responde pelos casos de tortura de Maceió, porém, poderia responder pelo interior se fosse criado o núcleo e ela atuasse conjuntamente com o promotor natural. “Esperamos que isso seja implementado porque já está aprovado por unanimidade pelo Conselho Superior do Ministério Público”, finaliza.