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“Estamos entregues às baratas”, dizem remanescentes da mina da Braskem em Maceió
Cerca de 40 mil pessoas foram desalojadas; quase 18 mil indenizações foram pagas
H1990020A. As letras pintadas em tinta spray vermelha estampam a fachada de uma casa cuja porta foi vedada com tijolos. No lugar de uma família, um código de controle.
A casa é só mais uma entre as milhares esvaziadas e abandonadas em um perímetro que cobre cinco bairros da capital de Alagoas: Bom Parto, Pinheiro, Mutange, Bebedouro e Farol. O padrão de códigos vermelhos mal pichados que se repete em dezenas de ruas de Maceió é o perfeito retrato é de um território fantasma.
Prédios e casas desocupadas em Maceió (AL) têm códigos pichados na parede / ReproduçãoPerto da casa, uma mulher carrega ramos de folhas e um telefone celular. Nele, ela mostra o filho cavando com as próprias mãos e uma pequena enxada um buraco de dois metros em frente ao portão da casa que ainda habita. O objetivo: conseguir acesso à água depois de mais de uma semana de seca.
“Esse aqui é meu filho, que é especial, cavando buraco na porta pra gente adquirir água, porque estava sem água há mais de oito dias aqui. E eu carregando com balde pra lavar roupa e cozinhar.” Marlene da Conceição está desempregada e espera que um dia possa ser realocada e indenizada pra abrir seu negócio e voltar a ter renda. “Estamos entregues às baratas.”
A frase de Marlene não é força de expressão. Depois do esvaziamento da região onde funcionava uma mina da Braskem: mato alto, lixo proliferado e ruas desertas. Tudo isso transformou o lugar em um território propício para a proliferação de todo tipo de animal.
“Lá a gente convive com ratos, baratas, escorpião, cobra, cassaco, sagui… a gente vive com esses animais em volta da gente. A área ficou toda descuidada, não tem mais ninguém, aí os bichos estão vindo tudo pra cá”, conta ela. “Se a gente não olhar, somos picados por eles, muita gente já foi picada. E as baratas voando tudo dentro de casa.”
Percorrer as ruas da região é como desbravar um cenário pós-guerra. Mensagens de protesto se espalham nas paredes que tiveram portas e janelas arrancadas a marretadas. “Me diz quanto vale o sal de nossas lágrimas”, diz uma delas.
Mensagens de protestos são comuns em paredes da área afetada pela mina em Maceió (AL) / ReproduçãoCasas, escolas, hospitais, mercados, oficinas mecânicas, bares, restaurantes, salões, barbearias e lojas viraram esqueletos fantasmas de muros com buracos abertos ou concretados. Quem ainda vive ali reclama da falta de luz, segurança, água, limpeza e respeito.
Lourival dos Santos é auxiliar de cobrança e guarda na memória as andanças pelas ruas hoje inabitadas. “Eu fazia cobrança nesse trecho aqui tudinho. Cinco horas, seis da tarde hoje dá até medo de você andar por aqui sozinho”, diz ele.
“Aqui era uma mercearia. Ali era uma lojinha de ferro velho, geladeira usada. Aqui era o mercadinho, padaria… E hoje está tudo abandonado”, conta Lourival enquanto aponta para os lugares abandonados.
A última contagem aponta 40 mil desalojados. A Braskem alega que já fez 19.108 propostas de compensação financeira pela desocupação, das quais 18.627 foram aceitas e 17.998 foram pagas. Isso significa que 1.110 famílias ainda não receberam indenizações por terem deixado suas casas. “O programa é de adesão voluntária e o índice geral de aceitação se mantém acima de 99% desde o início”, afirma a empresa.
O gasto pra tentar reverter a catástrofe é bilionário. A Braskem alega que já gastou R$ 9,2 bilhões com os problemas de Maceió, sendo R$ 4,4 bilhões apenas com indenizações. E que ainda prevê o gasto de mais R$ 5 bilhões.
A comunidade do Flexal foi um dos últimos lugares esvaziados, entre o fim de novembro e o começo de dezembro. Pescadores que tiravam o sustento da Lagoa Mundaú foram expulsos de suas casas a toque de caixa e fizeram protestos contra a medida.
As últimas desocupações foram feitas em dezembro, quando 23 famílias tiveram que deixar suas casas. Segundo a Braskem, que chama o movimento de ‘realocações preventivas’, a área de risco está 100% desocupada. “No último mês de dezembro, a Defesa Civil Municipal de Maceió concluiu a realocação dos moradores de 23 imóveis que resistiam à desocupação preventiva”, diz a empresa em nota enviada à CNN.
A mina de sal-gema foi construída no miolo de Maceió em plena ditadura militar sob o discurso de entregar progresso à cidade. A extração do sal petrificado incrustado no fundo do lago deixou buracos que, aos poucos, vão engolindo pedaços de terra, desnivelando o solo e provocando rachaduras em construções sexagenárias.
As pedras de sal são usadas para produzir plástico e soda cáustica, produtos vendidos pela indústria química que se sobrepujou financiada por incentivos federais a contragosto de protestos ignorados na época de sua instalação.
À medida que os tremores se repetem, as rachaduras se agravam e o risco aumenta, o perímetro de isolamento vai se ampliando.
No fim de novembro o Hospital Geral Sanatório foi evacuado e segue fechado. A cena chama atenção porque, à noite, as luzes da fachada seguem pintando a calçada de azul. Seria um hospital bem localizado e em bom estado não fosse o risco de um colapso.
O mesmo caminho teve a Escola Nossa Senhora do Bom Conselho, prédio edificado em 1877, no bairro de Bebedouro, e tombado em 1999. O local é descrito pela secretaria de Cultura de Maceió como “edifício neoclássico” detentor de “um amplo jardim romântico”.
Escola Nossa Senhora do Bom Conselho é um dos prédios históricos esvaziados e interditados em Maceió (AL) / ReproduçãoAntigo orfanato, ele abrigava atividades como aulas de costura, piano e canto, mas hoje tem a placa escorada no portão depois de ter caído no chão. Uma outra sinalização chama mais a atenção de quem por ali passa. O novo totem, em verde bandeira, informa “autorização ambiental municipal de manutenção e reparo” para a Braskem com prazo indeterminado.
A empresa diz que a demolição de todos os imóveis segue os acordos firmados judicialmente e que, após a demolição, limpará a área e providenciará drenagem e cobertura vegetal, mas que isso não acontecerá com as casas e prédios de interesse histórico.
A vista do alto das ruas do bairro Pinheiro permite ver casas pequenas esvaziadas na beira da lagoa e pode dar uma impressão equivocada de que as interdições se limitam a residências humildes e localizadas. Isso porque a ampliação do isolamento acabou abocanhando prédios inteiros, como um de doze andares a quatro quadras da principal avenida da cidade, a Fernandes Lima.
Prédio abandonado logo após a inauguração em Maceió (AL) / ReproduçãoDe silhueta ondulada e cantos retos, o edifício tem em seu muro principal adesivos de campanhas eleitorais desgastados e embranquecidos, mesmo fim que teve a grande faixa que segue estendida no topo de sua lateral anunciando: “últimas unidades”. Pra quem se mudou pra lá, o sonhou durou muito menos que o esperado.
Algumas ruas escuras onde ainda passam carros e motos ainda não foram interditadas com barris de concretos, mas têm os acessos à lagoa e a alguns imóveis bloqueados por grandes tapumes metálicos –alguns ironicamente enfeitados com pinturas de folhas verdes, escondendo a vista de um belíssimo pôr do sol, agora protegido por metal.
Tapume pintado esconde o por do sol na Lagoa Mundaú, em Maceió (AL) / ReproduçãoNestas ruas, as placas sinalizam rotas de fuga e pontos de recolhimento rápido, intervenções da Defesa Civil da cidade, que contribuem para pintar o clima de terra arrasada.
Placas da Defesa Civil orientam rota de fuga para o caso de emergências em Maceió (AL) / ReproduçãoNem o VLT escapou do efeito mina de sal. Duas estações foram terminantemente fechadas, interrompendo uma importante ferramenta de transporte público na cidade. Quem quer fazer a travessia pela região impactada precisa descer do trem e dar uma longa volta de van ou ônibus para, só assim, voltar a se locomover sobre trilhos.
A empresa defende que “a região ocupada nos bairros é constantemente monitorada e não existem estudos técnicos que indiquem a necessidade de novas desocupações”.
A placa de um dos acessos protegidos por guardas avisa que a interdição “visa garantir a segurança das pessoas durante as obras de estabilização e drenagem na Encosta do Mutange”. Mais à frente, outra placa: “Máquinas pesadas. Risco de acidente. Evite transitar a pé, de bicicleta ou de moto. Braskem.”
Placas informam sobre as providências tomadas pela Braskem em Maceió (AL) / ReproduçãoEnquanto a noite caía, a 7 quilômetros das ruínas da lagoa, na Ponta Verde, bairro mais valorizado da cidade, um homem bradava palavras de ordem sobre um caminhão de som cercado por manifestantes: “Braskem, cadê o tesouro que ‘tu usou’ pra afundar o Bebedouro?”.
Sobre os códigos nas fachadas e as portas e janelas vedadas, a Braskem alega que o processo de selagem dos imóveis da área de desocupação é feito pela Braskem por meio da colagem de adesivo onde consta o código (números e letras) de identificação de cada imóvel. Eles sugerem que as pinturas em muros e fachadas podem ser feitas por moradores e líderes comunitários.
Sobre os problemas com animais, insetos, lixo e abastecimento de água, a empresa diz que já fez “mais de 106 mil dedetizações e termonebulizações desde março de 2020”. O trabalho de limpeza urbana já recolheu mais de 85 mil toneladas de lixo e entulhos na região e que “a respeito de problemas no fornecimento de água […] não é responsável pela rede de abastecimento da cidade, e eventuais registros de interrupção dos serviços devem ser direcionados, pela população, à empresa competente”.
Sobre segurança, a empresa diz que “mantém um trabalho de apoio à segurança patrimonial, com uma equipe de 228 profissionais que se revezam 24 horas por dia, sete dias por semana, e sistema de câmeras e alarmes que conta com cerca de 550 equipamentos”.
No início da semana passada, a ministra Cármen Lúcia, do STF, mandou o prefeito de Maceió, João Henrique Caldas, o JHC (PL), e a Braskem prestarem esclarecimentos sobre os acordos de indenização. Tanto a prefeitura quanto a empresa, dizem que vão cumprir o prazo.
A Prefeitura de Maceió diz “ter recebido com naturalidade a informação sobre o despacho da ministra Cármen Lúcia, uma vez que se trata de rito esperado na tramitação processual” e que “encaminhará ao STF dentro do prazo estabelecido as informações solicitadas, ocasião em que demonstrará a total regularidade do termo de compensação firmado com a Braskem em julho de 2023 e homologado pelo Ministério Público Federal e Justiça Federal”.
A Braskem “destaca que todos os cinco acordos firmados com as autoridades são fruto de ampla discussão, baseados em dados técnicos e foram homologados na Justiça” e que “segue cumprindo integralmente os acordos assinados com autoridades federais, estaduais e municipal, que abrangem diversas medidas, como a realocação preventiva e compensação financeira das famílias; ações sociourbanísticas e ambientais; apoio a animais; zeladoria nos bairros; monitoramento do solo e fechamento definitivo dos poços de sal”.
Questionado pela CNN, o Ministério Público Federal em Alagoas afirmou que tem atuado no caso Braskem desde 2019, quando foram ajuizadas ações civis públicas contra a empresa e outros réus. “Numa delas houve decisão judicial suspendendo as licenças de operação e determinando a realização dos exames de sonar”, afirmam. “Em outras foram obtidos importantes acordos que obrigaram a empresa a adotar providências diversas sobre a região afetada pelo afundamento do solo causado pela exploração de sal-gema”, completa.
O MPF termina fazendo um alerta: caso a empresa descumpra os acordos homologados na Justiça, o órgão deve ser alertado e a Brasken poderá ser punida.