Geral
Estou do lado dos palestinos, diz deputado comunista israelense
A Opera Mundi, Ofer Cassif, da coalizão Hadash, liderada pelo Partido Comunista, afirmou que nada justifica o 'massacre que Israel está realizando contra Gaza'
"A incursão militar iniciada pelo Hamas não pode justificar o massacre que o Estado de Israel está realizando contra o povo de Gaza nos últimos três meses”, essa é a opinião de Ofer Cassif, que compõe a coalizão Hadash, liderada pelo Partido Comunista no Parlamento israelense.
A Opera Mundi, Cassif comentou sobre a ofensiva militar de Israel na Faixa de Gaza que já vitimou mais de 24 mil palestinos, incluindo crianças. Segundo ele, o Estado israelense está "ocupando e os palestinos sendo ocupados", e por isso, "estou do lado dos ocupados".
"Não me considero nada contra os israelenses, mas contra o governo de Israel, porque o governo de Israel se tornou inimigo de muitos israelenses. E essa é a razão pela qual eles tentam fazer tudo o que podem para se livrar desse governo que não é responsável apenas pela morte de palestinos, mas também pela morte de soldados israelenses, de cidadãos israelenses e pela péssima situação dos reféns em Gaza, porque seu governo não faz nada para libertá-los", disse.
Recentemente, o Knesset [Parlamento do país] afastou o deputado por ao menos 45 dias, após o parlamentar dizer que a guerra promovida por Tel Aviv faz parte de um "plano fascista". Cassif também é alvo de deputados que querem sua expulsão por conta do apoio à denúncia sul-africana contra Israel em Haia.
Cassif é ativista político há décadas e foi o primeiro israelense a ser preso por se recusar a servir nos Territórios Ocupados durante a Primeira Intifada. Na mesma época, ingressou no Partido Comunista e serviu como assistente parlamentar de Meir Vilner, uma das principais figuras do partido.
Leia na íntegra a entrevista de Opera Mundi com Oler Cassif:
Opera Mundi: Como se deu o início de sua vida política e por que, como político judeu, você se juntou à luta pelo socialismo e pela libertação da Palestina?
Ofer Cassif: bem, é verdade que, no meu caso, sou de origem judaica. E definitivamente não tenho vergonha disso. Isso não é o que estou fazendo. Mas minha primeira identificação é como socialista, e por mais que seja marxista, sou internacionalista e divido o mundo não entre pessoas e nações, mas entre classes e entre explorados e exploradores, oprimidos e opressores. E estou tentando apoiar aqueles que são oprimidos e explorados.
No caso do Oriente Médio, temos uma situação de ocupação em que o Estado de Israel está ocupando e os palestinos sendo ocupados. E, em Gaza, estou do lado dos ocupados. Embora eu tenha que enfatizar que, na minha opinião, a libertação dos palestinos da ocupação também é do interesse de Israel, porque a ocupação com certeza é sua primeira e principal experiência. Ela prejudica os palestinos e, portanto, prejudica os israelenses e os interesses da classe trabalhadora e dos explorados em Israel. Então, eventualmente, eles lutarão contra a ocupação, e isso se trata apenas de justiça e internacionalismo.
Em primeiro lugar, poderia nos dar uma visão geral da situação depois da escalada do conflito entre Israel e Hamas?
Vamos começar com 07 de outubro. Condeno totalmente o terrível massacre cometido pelo Hamas. Essa foi uma carnificina monstruosa cometida por assassinos dentro de Israel. Isso é inaceitável, isso é algo que não podem aceitar ou tolerar. Certamente não há justificativa para isso, nem mesmo para a matança contínua e os crimes permanentes da ocupação, do cerco, do apartheid e da colonização. Nada disso pode justificar tal carnificina. Portanto, sou totalmente contra o que o Hamas fez. Também tenho dito que quem de fato manteve o Hamas no poder, em Gaza, foi o governo israelense, especialmente liderado por Benjamin Netanyahu.
Não é segredo para ninguém isso. Netanyahu disse explicitamente, não faz muito tempo, que aqueles que se opõem ao estabelecimento do Estado palestino devem enfraquecer a Autoridade Palestina e fortalecer o Hamas. E não se trata apenas de palavras, o governo liderado por Netanyahu e o próprio Netanyahu de fato permitiram isso. Portanto, eles são responsáveis, em essência, pelo fortalecimento do Hamas e, por fim, pela carnificina que ocorreu em 07 de outubro.
Netanyahu e seu governo querem dividir para governar, porque essa é uma estratégia colonialista clássica, eles querem dividir a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. E, ao fortalecer o Hamas, eles poderiam dizer, e o fizeram, que não se pode confiar na Autoridade Palestina, que ela é fraca e que, portanto, não há como negociar com o Estado de Israel. Portanto, o próprio Netanyahu e seu governo ao longo dos anos, especialmente nos últimos 14 ou 15 anos, são responsáveis pelo poder do Hamas.
Além disso, na noite do massacre, o próprio Netanyahu transferiu 32 batalhões da fronteira entre Israel e Gaza para a Cisjordânia, para proteger os assentamentos ilegais. E há muitos outros exemplos. Portanto, o Hamas é definitivamente responsável pelo crime, pois executou essa terrível carnificina, mas a responsabilidade pela criação das condições e das circunstâncias que permitiram que o Hamas fizesse isso está totalmente nas mãos de Netanyahu e de seu governo. Agora, depois disso, como vemos, mesmo os crimes da ocupação não podem justificar a carnificina cometida pelo Hamas.
Contudo, a incursão iniciada pelo Hamas não pode justificar o massacre que o Estado de Israel está realizando contra o povo de Gaza nos últimos três meses. E a única razão pela qual o governo de Israel realiza esse ataque a Gaza, cujas principais vítimas são civis inocentes, principalmente crianças, é que não se trata da segurança de Israel. É a segurança do governo. É a sobrevivência do governo. E não me considero nada contra os israelenses, mas contra o governo de Israel, porque o governo de Israel se tornou inimigo de muitos israelenses. E essa é a razão pela qual eles tentam fazer tudo o que podem para se livrar desse governo que não é responsável apenas pela morte de palestinos, mas também pela morte de soldados israelenses, de cidadãos israelenses e pela péssima situação dos reféns em Gaza, porque seu governo não faz nada para libertá-los. Portanto, faço tudo o que posso para salvar a vida de palestinos e israelenses, e eles [Knesset] não gostam disso e tentam me silenciar, é claro.
Você declarou recentemente que é a favor de processar Israel na Corte Internacional de Justiça em Haia, e que isso é verdadeiro patriotismo. Conte-nos mais sobre isso.
Bem, a questão é que temos de distinguir entre Israel enquanto Estado dos israelenses e o governo de Israel. Sabe, o único regime em que não há distinção entre o governo e o Estado são as ditaduras fascistas, nas quais o governo é identificado como o Estado e vice-versa, e no regime democrático, mesmo o regime democrático minimalista, sem falar no mais notável, há uma clara distinção entre o governo como um ramo do Estado e o próprio Estado. Portanto, ser patriota não é, sabe, apoiar o governo cegamente. Não, ser patriota é defender o bem de sua sociedade. E o bem da sociedade é, muitas vezes, exatamente o oposto do que o governo está fazendo.
Em resumo, o que estou dizendo, eu e meus colegas, queremos salvar a sociedade israelense. E isso faz parte de ser patriota, na minha opinião, fazer o que for possível para mudar sua sociedade e seu Estado. Em segundo lugar, é claro, [ser patriota] é basicamente proporcionar prosperidade e segurança ao povo de Israel, o que significa paz e a libertação do povo palestino. O povo israelense não pode ser libertado enquanto os palestinos não forem libertados. Essas coisas estão interligadas e, na minha opinião, essa é a base do patriotismo.
ReproduçãoOfer Cassif, membro do Knesset, se juntou à luta pelo socialismo e pela libertação da Palestina
Em outras entrevistas, você mencionou a estrutura colonial de Israel. Nesse sentido, como você vê o seu projeto político e o do Hadash?
Sobre o nosso projeto político, antes de tudo, a guerra deve ser interrompida. As tropas israelenses devem ser retiradas da Faixa de Gaza, deve haver uma troca de prisioneiros e a libertação de todos os reféns. Essa é a primeira coisa que deve ser feita, é claro, e depois o povo palestino deve ser libertado da ocupação e da opressão. Eles têm o direito, o povo palestino tem o direito de ter seu próprio Estado soberano e independente. Naturalmente, esse sempre foi o caso, há muitos anos, de que a solução de dois Estados é a solução correta.
Isso significa que o povo palestino terá seu próprio Estado independente em seus próprios territórios que Israel ocupou em 1967, ou seja, Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, ao lado do Estado de Israel. Outra coisa que deve ser feita é uma solução justa para a questão dos refugiados palestinos, de acordo com as resoluções das Nações Unidas. E, é claro, o Estado de Israel deve ser democratizado, de modo a acomodar a minoria nacional de 28% dos palestinos que são cidadãos em Israel. Essas são as linhas básicas do nosso projeto, e estamos nos esforçando para isso. E vamos continuar.
E por esse posicionamento, você está sendo perseguido no Parlamento de Israel. Como está lidando com a censura que está sofrendo?
Suponho que você se lembre de que, antes do massacre de 7 de outubro, houve tentativas contínuas do governo de realizar um golpe de Estado, que eles chamaram de reforma judicial. Eles queriam transformar Israel em uma ditadura fascista, uma ditadura fascista completa. Eles fracassaram. Em parte, por causa dos protestos em Israel. Agora, eles estão usando a guerra e o massacre de outubro para atingir o mesmo objetivo, por outros meios. Parte disso é a perseguição da oposição que se opõe à guerra e à ocupação, e a perseguição tem se fortalecido e se aprofundado desde o dia 7 de outubro. Por exemplo, agora é totalmente proibido fazer manifestações contra a guerra em Israel e se manifestar pela paz e expressar, você sabe, simpatia pelas crianças de Gaza. As pessoas querem se manifestar contra a guerra, não em apoio ao Hamas, todos nós somos contra o que o Hamas fez. Mas isso não deve ser feito às custas do povo palestino, que é a maioria inocente.
E assim, de qualquer forma, os estudantes que eram pobres publicaram postagens contra a guerra e foram suspensos de suas universidades, o que foi um absurdo. As pessoas perderam seus empregos por causa da mesma coisa. Toda vez que havia uma tentativa de manifestação, como eu disse, é totalmente proibido, então havia violência por parte da polícia. E as pessoas estavam sendo interrogadas simplesmente porque postaram fotos contra a guerra para que pudéssemos mostrá-las em todos os lugares. Éramos perseguidos até mesmo no Knesset. Eu, pessoalmente, fui suspenso por 45 dias porque me referi ao que estava acontecendo em Gaza como um massacre, e meu colega, amigo e camarada, um membro do Knesset, foi suspenso por dois meses mais ou menos pela mesma coisa, e agora vou ser expulso definitivamente do Knesset porque assinei uma petição em apoio ao apelo da África do Sul.
Tudo faz parte do mesmo problema, que é a perseguição da oposição e especialmente da oposição que se opõe à guerra e, é claro, apoia o fim da ocupação e uma paz justa.
Você acredita na linha de Jabha e do Partido Comunista de Israel (PCI) de uma solução de dois Estados, que muitos argumentam não ser mais viável. Como você responderia a isso?
Acho que isso é um grande erro, porque não é só o fato de ser viável, nenhuma outra alternativa é viável. E sei que esses argumentos que alguns desses defendem, alguns deles são grandes amigos meus, mas acho que estão errados, porque as duas alternativas agora são dois Estados ou um Estado de apartheid. Sei que muitas pessoas argumentam que parece impossível, neste momento, evacuar tantos colonos da Cisjordânia ocupada e de Jerusalém Oriental, que é a base da solução de dois Estados. Eu não concordo com isso.
Acho que é muito mais problemático e menos viável criar uma situação em que haja um Estado, um Estado democrático em que todos eles [colonos] possam ficar em seus próprios lugares sem ruminar e sem se envolver em perseguição, e até mesmo violenta, de seus vizinhos palestinos. Isso será, você sabe, um apartheid, um domínio da Ku Klux Klan, não um Estado democrático.
Portanto, a única maneira de libertar os dois povos, principalmente, é claro, os palestinos, pelo menos da ocupação opressiva e racista, é a retirada total de Israel dos territórios ocupados, incluindo a evacuação e o desmantelamento dos assentamentos. Não vai ser fácil, não, não vai ser fácil, mas é uma obrigação, porque a alternativa é uma terrível expansão e derramamento de sangue. E temos de impedir isso.
Por um lado, você argumenta sobre as semelhanças com o regime do apartheid na África do Sul, por outro você se apresenta como um defensor patriótico dos interesses israelenses. Alguns podem argumentar que há uma contradição no que você diz. Você poderia esclarecer isso para nós?
Não, isso não é ilógico, nem mesmo contraditório. A contradição é entre a situação atual em Israel e, é claro, a democracia e a justiça, etc. A contradição não é entre a própria existência de Israel. O Hadash e eu sempre apoiamos a existência de Israel como um Estado soberano. Mas, definitivamente, temos que nos esforçar para mudar o atual Estado e os fundamentos deste país. Os comunistas rejeitam totalmente a ideia da supremacia judaica, e esta não pode coexistir com a democracia e a justiça.
Quando simplesmente apoiamos a existência de Israel como um Estado soberano, dizemos que apoiamos um Estado que é realmente democrático e que se esforça para trazer justiça. Isso significa que nossa luta, juntamente com nossa luta contra a ocupação, também é pela democratização de Israel e pela abolição de qualquer empreendimento colonial ou supremacista. Portanto, não é uma contradição. É uma contradição apenas em relação às condições atuais, mas essas condições são exatamente aquelas que queremos transformar e mudar, como mencionei antes.
Para muitos ativistas, a lei é a condição sine qua non, o princípio e o fim da justiça. A crítica ao tratamento dado por Israel aos palestinos, por exemplo, geralmente culmina em uma mera preocupação sobre se Israel adere suficientemente aos princípios do direito internacional. O direito internacional falhou totalmente em impedir ou mesmo desacelerar o projeto colonial brutal de Israel. As instituições da lei podem ser ferramentas em um movimento político para a libertação da Palestina?
Sabe, acho que pode ser útil, mas não é suficiente. Não, acho que o mais importante é transformá-la em uma força política para levar o governo israelense a aceitar a ideia de que a ocupação deve acabar, e as opiniões de diferentes instituições, como a Corte Internacional de Justiça (CIJ), fazem parte disso, mas não podem ser a única coisa. Precisamos de mais vozes individuais e até mesmo de governos. E há outro aspecto que deve ser enfatizado. Receio que, com muita frequência, na comunidade internacional, haja uma grande confusão entre o antissemitismo e os críticos da ocupação, e não são a mesma coisa.
Temos de lutar juntos contra a ocupação, mas temos de lutar contra o racismo, inclusive o antissemitismo, quando há pessoas que se fazem passar por apoiadores dos palestinos, mas não por causa da justiça, mas porque odeiam os judeus. Isso não pode ser tolerado e também causa muitos danos aos palestinos. Temos de lutar juntos, pessoas de religiões, credos, crenças e lealdade diferentes. Temos de reconhecer uns aos outros igualmente e lutar juntos pela justiça, por todos, inclusive os palestinos.
Como você vê o futuro diante do conflito atual?
Precisamos acabar com a guerra imediatamente. O número de mortos em Gaza, destruição, fome, falta de medicamentos e de água são insuportáveis. Isso não pode continuar. Essa é a primeira coisa que deve ser feita, e a comunidade internacional deve agir em conjunto para trazer uma paz justa à região.
E isso significa, como eu disse, um povo palestino independente em um Estado soberano e independente ao lado dos israelenses, com uma solução justa de acordo com as linhas das resoluções da ONU para o problema dos refugiados palestinos. Isso deve ser feito imediatamente porque, se não for feito, o derramamento de sangue continuará, e todos pagarão o preço, se não amanhã, em um mês, se não em um mês, em um ano. Temos que pôr fim a essa terrível carnificina de ambos os lados. É impossível viver assim.
Ambos os povos, árabes, judeus, israelenses e palestinos podem ter sua vida para viver em paz, segurança e prosperidade. E isso não pode ser alcançado por meios militares, pela violência, mas somente por meios pacíficos e pela justiça. E precisamos que a comunidade internacional olhe para frente em busca disso. E acredito que, no final, teremos sucesso. A boa pergunta é quanto sangue ainda será necessário para que isso aconteça?