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Modelo de sistema prisional aumenta criminalidade e ataca direitos
A primeira penitenciária privada do país foi inaugurada há quatro anos em Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte. O curto espaço de tempo bastou para que a Umanizzare, empresa que administra o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, expusesse a arapuca do modelo neoliberal de encarceramento privado, com 56 presos mortos e mais de 180 foragidos depois de 17 horas de rebelião.
O transbordamento do caos do sistema penitenciário no início de 2017, que contabilizou a morte de mais de 130 presos em apenas 15 dias, foi além: colocou em xeque a eficiência da privatização penitenciária e estilhaçou a vitrine marqueteira do governo de Michel Temer, que insiste em apontar a cogestão do Estado com empresas privadas como saída para o que chamou de "acidente". A ideia da privatização do sistema penitenciário é velha. Foi pauta no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, período em que o encarceramento em massa foi insuflado no país. Na década de 1990 havia cerca de 90 mil presos, e hoje são quase 700 mil.
O Ministério Público pediu ao governo do Amazonas o encerramento do contrato com o consórcio do qual a Umanizzare faz parte, alegando indícios de irregularidades como superfaturamento, mau uso do dinheiro público, conflito de interesses empresariais e má gestão. A empresa recebe R$ 4,7 mil mensais por preso do Compaj, enquanto a média nacional, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é de R$ 2,4 mil. O MP suspeita que esse dinheiro não foi empregado em infraestrutura e apoio aos detentos.
"As prisões privadas não são menos onerosas para estados e contribuintes nem tampouco operam em níveis minimamente aceitáveis de eficiência. Ao contrário, ao configurar um contexto institucional avesso a estratégias de reabilitação de detentos, o funcionamento concreto das prisões privadas vai desmanchando qualquer aparência de efetividade de metas e indicadores de qualidade fixados em contratos de gestão", argumenta o professor da Universidade de São Paulo (USP) Laurindo Dias Minhoto, autor do livro Privatização dos Presídios e Criminalidade (2000).
Para ele, privatizar presídios, fomentar o mercado de previdência privada pela desmontagem da previdência pública, bloquear o aumento de gastos em saúde e educação e, no mesmo passo, intensificar o processo de mercantilização de direitos sociais e privatização de escolas, universidades, centros de saúde, são medidas que nada possuem de natural e necessário como estratégias de enfrentamento do déficit público. "Desse ângulo, as chacinas recorrentes em nossos presídios e a captura do sistema penitenciário pelo crime organizado não deixam de ser também desdobramentos do que se poderia ver como 'austericídio' à brasileira", diz.
Lucro e pena de morte
A avalanche de dados sobre sistema penitenciário brasileiro é macabra. O que resume o caos é o fato de o Brasil ter mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes, enquanto o indicador mundial é de 144 presos por 100 mil habitantes, de acordo com o Centro Internacional para Estudos Prisionais (ICPS, na sigla em inglês – ONG ligada à Universidade de Essex, na Inglaterra).
"Tendo em vista a situação de barbárie estrutural que qualifica historicamente o funcionamento das prisões brasileiras, o leitor poderia muito bem se perguntar: mas, afinal, o que pode piorar? Por que não experimentar a privatização? Em primeiro lugar, é certo que a situação calamitosa de nossas prisões dificilmente encontra similar em outros lugares: a pena de privação de liberdade no Brasil implica muitas vezes uma condenação à morte fast track e não 'a fogo lento' como se diz da condenação a penas longas em sistemas mundo afora", diz Laurindo Minhoto. "Desse ponto de vista, uma prisão privada é pouco mais do que uma estratégia de exploração comercial dessa situação por meio de financiamento público, pois convém não esquecer que é o próprio Estado que banca a participação e a expansão do setor privado nessa área."
O advogado Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, considera que a privatização dos presídios aprofunda o sistema de encarceramento massivo, o qual é seletivo e responde à necessidade de controle social de alguns grupos, que de alguma maneira lucram com o modelo, seja com construção, alimentação, hotelaria, lavanderia, entre outros setores de negócios. "Quanto mais preso, mais lucro; quanto maior a pena, mais lucro", afirma.
Em 2014, a Pastoral fez um estudo sobre a privatização de presídios. Há hoje no país 30 prisões privatizadas nos estados de Santa Catarina, Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas e Amazonas. Os contratos mais comuns são de cogestão, em que o estado é responsável pela direção da unidade, guarda e escolta externa, enquanto a empresa privada assume serviços de saúde, alimentação, limpeza, vigilância e escolta internas, além da manutenção das instalações.
A Pastoral Carcerária se opõe à privatização e sugere parceria com organizações da sociedade civil e sem fins lucrativos para que sejam oferecidos aos presos serviços mais dignos de alimentação, assistência médica e educação. Desde 2003, defende agenda nacional pelo desencarceramento junto com outras entidades. "Um dos pilares é vedar a privatização do sistema, que conta com apoio de grupos que patrocinam o encarceramento em massa, e também conter a mídia que vende medo, discurso de ódio e favorece o punitivismo exacerbado. Somente com ação política é possível desmontar o pensamento coletivo de que bandido bom é bandido morto. Este modelo de sistema não serve para conter criminalidade e violência", diz Malvezzi.
Seletividade
O advogado criminal Hugo Leandro, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, afirma que existe um recorte muito definido fortalecido pelos filtros de preconceito que auxiliam na punição de negros e pobres desde a abordagem policial. "O Direito Penal é instrumento a serviço do Estado e também de quem ocupa papel importante no Estado, desde o império, quando havia ímpeto de punir setores da sociedade discriminados por quem estava no poder. Se naqueles tempos o alvo era a população negra, hoje são os negros e pobres", afirma.
O caso do estudante Rodolpho Gonçalves Carlos da Silva, herdeiro do maior grupo da indústria alimentícia da Paraíba e da afiliada local da TV Globo, ilustra a seletividade. Neto do ex-senador e ex-vice-governador da Paraíba José Carlos da Silva Junior, ele foi acusado de atropelar e matar um agente do Detran ao fugir de uma blitz da Operação Lei Seca na madrugada de 21 de janeiro, em João Pessoa, mas não está preso, apesar de testemunhas o virem fugir sem prestar socorro à vítima – o agente Diogo Nascimento Sousa, de 34 anos, morreu.
"A Justiça Criminal é visivelmente mais forte do que o cidadão porque oferece tratamento menos rude aos que têm dinheiro e a lógica das agências penais é impulsionada e legitimada pela sociedade. Difícil dizer se é ontologicamente social ou se é construída. O nível de debate hoje é muito mal colocado na mídia. Destilam ódio nos outros. A sociedade é punitivista, principalmente contra a classe social mais baixa", afirma o advogado.
Com incremento da população prisional no Brasil de cerca de 7% ao ano – a de mulheres é de 10,7% ao ano –, não há indicadores de que o encarceramento produza qualquer resultado positivo na redução da criminalidade nem justifique o enorme custo social e financeiro de mandar cada vez mais pessoas à prisão. Do Levantamento de Informações Penitenciárias (Infopen), de dezembro de 2014, consta que, no Brasil, o cárcere tem reforçado mecanismos de reprodução de um ciclo vicioso de violência que, como padrão, envolve a vulnerabilidade, o crime, a prisão e a reincidência e, por vezes, serve de combustível para facções criminosas.
A onda de privatizações viabiliza o mercado das prisões: remuneração das empresas por número de presos, cláusulas contratuais de ocupação mínima que asseguram artificialmente o retorno do investimento (quanto maior o número de vagas, mais azeitada a máquina do encarceramento em massa), trabalho prisional em condições muito aquém dos mínimos legais. Os contratos de PPPs são para projetar, construir e financiar presídios, em concessões que podem durar 30 anos.
Além disso, a fim de comprovar a eficiência do sistema privatizado, o estado contratante propõe-se a escolher a dedo detentos que assegurem o status quo das unidades, rasgando de vez a Lei de Execução Penal, mal seguida, principalmente na detenção provisória e separação de pesos por gravidade de delito.
Hoje existem no mundo aproximadamente 200 presídios privados, sendo metade deles nos Estados Unidos. O modelo começou a ser implementado naquele país ainda nos anos 1980, no governo Ronald Reagan, seguindo a lógica de aumentar o encarceramento e reduzir os custos, e hoje atende a 7% da população carcerária. O modelo também é difundido na Inglaterra – lá implementado por Margareth Thatcher – e foi fonte de inspiração da PPP de Minas Gerais, segundo o então governador Antônio Anastasia (PSDB). Em Ribeirão das Neves, o contrato da PPP foi assinado em 2009, na gestão do então governador Aécio Neves (PSDB).
Nos documentos da PPP da gestão Aécio disponíveis no site do governo mineiro, fala-se inclusive no retorno ao investidor. Afinal, são empresas que passaram a cuidar do preso e empresas buscam o lucro. Há também a exploração da mão de obra dos encarcerados. O trabalho do preso é 54% mais barato porque as condições de trabalho não são regidas pela CLT, mas sim pela Lei de Execução Penal (LEP), de 1984. Se a Constituição de 1988 diz que nenhum trabalhador pode ganhar menos de um salário mínimo, a LEP afirma que os presos podem ganhar 75% de um salário mínimo, sem benefícios.
"O lucro que as empresas auferem com essa onda de privatização não vem tanto do trabalho prisional, ou seja, da exploração da mão de obra cativa, mas do fato de que os presos se tornaram uma espécie de consumidores dos produtos vendidos pela indústria da segurança e da infraestrutura necessária à construção de complexos penitenciários", detalha o professor Leandro Minhoto.
Ausência do Estado
A presidenta do Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo, Fernanda Magano, afirma que de 1990 para frente, após o massacre do Carandiru, houve uma reação dos presos, que começaram a se organizar em facções, parte disso ainda herança do Comando Vermelho, no Rio, e do PCC, em São Paulo. "O que observamos em 2006 foram rebeliões e ataques como demonstração de força dessas facções para fora e dentro dos presídios", diz. "Quem trabalha dentro do sistema ouve que há acordo tácito do PSDB (que governa o estado desde 1995) com as facções, mas não há provas. O fato é que no decorrer dos últimos anos 10 anos não teve nenhuma manifestação tão intensa como a de 2006", observa a dirigente.
Para a psicóloga, a ausência do poder público produziu quase um Estado paralelo, no qual famílias de detentos são reféns desse controle. Segundo ela, existe um paradoxo, porque as facções ajudam o contato da família com seus presos e oferecem proteção dentro e fora dos presídios. Contrária às privatizações, Fernanda Magano defende que a tutela de presos é dever do Estado e que a privatização do sistema retroalimenta o crime e perpetua a existência dos presídios como negócio. "Existem modelos que falam do abolicionismo penal porque o cárcere produz exclusão social", afirma.
O presidente da Federação Brasileira dos Servidores Penitenciários (Febrasp), Leandro Alan Vieira, considera a privatização do sistema imoral e inconstitucional. "É uma forma mercantilista de explorar a prisão. Os governos gastam mais e há mais o risco de rebeliões", diz.
Para ele, terceirizar significa fragilizar o sistema, ao permitir superfaturamento nos contratos, concessão a empresas que fazem doações a políticos e até a possibilidade de uma empresa pertencer ao crime organizado ou financiar campanhas políticas em troca do apoio à privatização. "As unidades prisionais deveriam ser ressocializadoras e de segurança. Essas responsabilidades não podem ser transferidas para terceiros."