Nacional
Manutenção de datas do exame expõe desigualdades entre estudantes
Levantamento da ONG Casa Fluminense, com base em números de 2018, indica que quase metade dos candidatos do Enem não têm computador em casa
E se uma geração de novos profissionais fosse perdida? A indagação abre a peça publicitária do Ministério da Educação a respeito da abertura das inscrições para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), veiculada pela primeira vez no dia 4. A propaganda sustenta que a data da prova deve ser mantida a despeito da pandemia atual.
Para especialistas, a realidade é outra: a não postergação do exame, que ocorreria nos dias 1º e 8 de novembro na edição impressa e 22 e 29 de novembro na digital, pode custar o futuro de uma geração inteira de alunos de baixa renda, que não dispõem das mesmas ferramentas para manter os estudos durante a crise do novo coronavírus.
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), declarou nesta quinta-feira que conversou com o presidente Jair Bolsonaro sobre o assunto e, segundo ele, o presidente se mostrou “sensível” ao apelo pelo adiamento do exame. Na quarta-feira, Bolsonaro chegou a admitir a possibilidade, mas desde que a prova fosse aplicada neste ano.
Para o jornalista especializado em educação e colunista do GLOBO Antonio Gois, o debate em torno do Enem ganhou contornos políticos no momento em que estudantes demandam, no outro lado da ponta, soluções práticas.
— O ponto que eu tenho mais insistido é a politização da discussão. A data do Enem não tem que ser uma batalha para provar que o Brasil está normal, que a Covid-19 é só uma gripezinha ou que será uma vitória da oposição se o Enem for adiado. A postergação do exame tem que ser discutida com os estudantes e com as redes de ensino — avalia Gois. — Seria no mínimo uma insensibilidade não adiar. Vai trazer um senso de injustiça para muitos dos alunos.
Segundo o colunista Lauro Jardim, do GLOBO, o ministro Abraham Weintraub reconheceu a possibilidade de adiamento em reunião na Câmara, mas ponderou que a confirmação da postergação de datas neste momento desestimularia os vestibulandos.
Especialistas, no entanto, discordam: por conta do coronavírus, não há condições de manter as datas do Enem.
— A manutenção da data só amplia as instabilidades. Você está produzindo insegurança psicológica em um momento em que as pessoas já estão frágeis — avalia Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco.
Nesta semana, o Instituto Unibanco publicou um levantamento avaliando a posição oficial de 27 países que adotam exames de ingressos para o ensino superior. Destes, 22 optaram pelo adiamento do exame. Estas nações, reforça Henriques, entenderam que precisavam ragir de forma ativa e chamaram para si a responsabilidade de definir uma solução para o problema.
João Marcelo Borges, diretor de estratégia política da ONG Todos Pela Educação, avalia que não se trata apenas das desigualdades educacionais:
— Trata-se também de condições socioeconômicas díspares agravadas pela pandemia e suas consequências.
Para Borges, a solução passa por quatro caminhos: enfatizar que o Enem acontecerá para manter a mobilização de alunos e professores, anunciar o adiamento com a garantia de escolha posterior de uma data segura para alunos e aplicadores do exame; a criação de um gabinete para avaliar as medidas necessárias para viabilizar a prova, compostos pelo MEC, o Inep, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), uma associação que represente as escolas privadas e as entidades que representam as universidades públicas e particulares e, por fim, iniciar o mais rápido possível as tratativas para garantir a operação logística do Enem, que é complexa:
— Se não começar a fazer esse replanejamento agora, pode ser que o MEC tenha que gastar muito mais. A persistir a posição de não adiar, eu não tenho a menor dúvida de que no segundo semestre o STF daria ganho de causa a uma ação bem fundamentada que exigisse uma segunda prova para os alunos prejudicados. Isso aumentaria ainda mais os gastos. Para um minsitro que se diz preocupado com o dinheiro dos brasileiros, iniciar logo um replanejamento é uma medida obrigatória. E ele está perdendo essa dimensão.
Acesso limitado a computadores em casa
Levantamento da ONG Casa Fluminense, com base em números de 2018 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), indica que 2,3 milhões de candidatos declararam não ter acesso a computadores na edição em todo o Brasil. Destes, 89,1% são estudantes egressos da rede pública e 70,3% se declararam negros. O universo corresponde a quase metade dos 5,5 milhões de inscritos na edição daquele ano.
— Optamos por mostrar não só a dificuldade com a internet no país como também a dificuldade para estudar, fazer trabalhos e participar das aulas com os recursos limitados de um celular. Imagina construir uma apresentação de slides, uma planilha, em uma tela limitada? Várias escolas montaram seus laboratórios por meio de políticas públicas. Mas, nesse momento da pandemia, não dá para acessar nem o laboratório da escola nem as lan houses, muito comuns nas periferias — avalia Vitor Mihessen, economista da Casa Fluminense e coordenador da pesquisa.
Para o diretor de estratégia do Todos pela Educação, mesmo que todos os alunos de baixa renda tivessem computadores em casa, acompanhados de uma conexão de internet de boa qualidade, ainda estariam em condições muito piores do que as dos mais ricos. Há agravantes como o adensamento populacional, com residências de poucos cômodos e famílias confinadas em razão da Covid-19.
Ainda segundo Borges, mesmo a maior familiaridade dos candidatos ao Enem com tecnologias digitais por conta da idade não se traduz no melhor aproveitamento das aulas remotas que, reforça, são muito distintas do formado de ensino a distância (EaD).
O diretor da ONG antevê, ainda, um grande descompasso no conteúdo dos alunos concluintes que, ao contrário dos estudantes de outras séries, não terão a oportunidade de repor devidamente os conteúdos perdidos após a pandemia com ou sem o adiamento do Enem:
— É muito provável que esses alunos, os novos ingressantes, precisem de um apoio de recuperação de conteúdo no primeiro semestre do ensino superior. Isso já é uma realidade no Brasil, porque os alunos têm uma formação deficitária na educação básica, como os indicadores mostram.
Inep sugere ampliação de cotas
Na última quarta-feira, antes de Weintraub reconhecer a possibilidade de adiamento, o presidente do Inep, Alexandre Lopes, defendeu em uma transmissão ao vivo na internet a ampliação de cotas sociais e a negociação, junto ao Congresso, para ampliar os fundos do Prouni de forma a atenuar os impactos nos candidatos de baixa renda. Para Henriques, as medidas não funcionariam isoladamente.
— É mais um sintoma de quem conhece pouco o que está envolvido no processo da seleção. Seria ótimo aumentar as cotas e aumentar os recursos, sou a favor, mas isso não substitui a necessidade de produzir a previsibilidade e a segurança da data do Enem — avalia o superintendente executivo do Instituto Unibanco.
Para o diretor do Todos pela Educação, a proposta exclui o papel do MEC e do Inep da solução do problema.
— Ao propor isso, ele está tirando o problema da mesa dele e transferindo para as instituições federais ou estaduais públicas de ensino superior e propondo um aumento de gastos no momento de restrições orçamentárias, aumento esse que é importante e necessário na educação. A proposta do MEC é preguiçosa, incompetente, política e administrativamente irresponsável.