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Padre Júlio ironiza pedido de CPI: 'Se eu morrer, a Cracolândia some?'
Em entrevista, coordenador da Pastoral do Povo de Rua de SP ironizou a tentativa do vereador Rubinho Nunes (União Brasil) de investigá-lo
Alvo de um pedido de CPI na Câmara Municipal de São Paulo por causa do serviço social que realiza com pobres e famintos no Centro da capital paulista, o padre Júlio Lancelotti disse nesta quinta-feira (4) que “criminalizar trabalho com população de rua e dependência química é tentar tirar o foco da questão da Cracolândia”.
Em entrevista à GloboNews, o coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo ironizou a tentativa do vereador Rubinho Nunes (União Brasil) de investigá-lo pelo trabalho social na distribuição de comida e roupas para as pessoas famintas da região central da cidade.
“A gente tem que entender o problema na complexidade que ele tem. Quando dizem que a Cracolândia existe por causa de mim, eu sempre penso: ‘se eu morrer hoje ou amanhã, a Cracolândia vai desaparecer?’. Se eu sou a causa, é tão fácil de resolver. É só eu morrer que acabou a Cracolândia. Não tem mais...”, declarou.
“A lógica é de quem está do lado dos indesejados, vai ser indesejado. Acho que criminalizar algumas pessoas sempre é uma forma de não enfrentar o problema do tamanho que ele é. A gente criminaliza, ofende e trata de uma forma negativa a pessoa, a gente tira o foco da questão. A questão que nós temos que enfrentar é como lidar com a dependência química, com as cenas de uso, com essa questão que é tão grave no Centro de São Paulo e de outras cidades”, completou.
O coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo da Arquidiocese de SP afirmou que a criação de uma suposta CPI contra ele e as ONGs que atuam na região central é fruto do acirramento da polarização política em ano eleitoral e da influência da especulação imobiliária e empreiteiras na Câmara Municipal.
“Essa criminalização de algumas pessoas, de alguns movimentos ou de algumas entidades é uma forma de não enfrentar com clareza e profundidade a questão que está em foco na Cracolândia. (...) Essa polarização numa cidade, a gente não pode perder o contexto que São Paulo é a vitrine do mercado imobiliário. É a vitrine de especulação imobiliária. E a especulação imobiliária tem um inimigo número 1, que são as pessoas em situação de rua. Uma população que aumentou exponencialmente em São Paulo”.
“Aumentou com todas as ações que o Poder Público faz na Segurança Pública na questão da chamada Cracolândia. Nada diminui. Só aumenta. Então, essa criminalização é uma forma de perder o foco. E ela se tornou aguda porque nós não conseguimos enfrentar o problema do tamanho que ele é. Nós ficamos no efeito e não vamos para as causas. Qual é a causa de tudo isso? Por que existe tudo isso?”, declarou.
“A gente quer combater as pessoas que são dependentes químicas e não combate o tráfico. Ali tem que ver onde está o tráfico, como ele funciona, quais são as fontes de manutenção. Há dados aterradores. A gente não sabe de onde vieram. Mas os próprios vereadores colocam que a chamada Cracolândia movimenta R$ 10 milhões. Pra onde vai isso?”
“Se a CPI for realmente olhar isso, você vai ver que vários agentes do contingente de segurança – não todos, é uma exceção – foram detidos nessas operações. Então, a gente tem que entender o problema na complexidade que ele tem”.
Solidariedade da Arquidiocese de SP
O padre Júlio Lancelotti, da Pastoral dos Moradores de Rua de SP, ao lado do arcebispo de SP, Dom Odilo Pedro Scherer, responsável pela Arquidiocese de SP. — Foto: Divulgação/Arquidiocese de SP
A Arquidiocese de São Paulo divulgou nesta quinta-feira (4) uma nota de repúdio contra a proposta de criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos vereadores de São Paulo para investigar ONGs que fazem trabalho social na região da Cracolândia, especialmente o Padre Júlio Lancelotti.
"Acompanhamos com perplexidade as recentes notícias veiculadas pela imprensa sobre a possível abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que coloca em dúvida a conduta do Padre Júlio Lancellotti no serviço pastoral à população em situação de rua."
No texto, a Arquidiocese defende e reitera a importância do trabalho desenvolvido há décadas pelo Padre Júlio.
"Na qualidade de Vigário Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, Padre Júlio exerce o importante trabalho de coordenação, articulação e animação dos vários serviços pastorais voltados ao atendimento, acolhida e cuidado das pessoas em situação de rua na cidade. Reiteramos a importância de que, em nome da Igreja, continuem a ser realizadas as obras de misericórdia junto aos mais pobres e sofredores da sociedade".
Vereador advogou para deputado cassado
O pedido de CPI foi protocolado em 6 de dezembro de 2023 pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), ex-integrante do Movimento Brasil Livre (MBL) e ex-advogado do ex-deputado estadual Arthur do Val, conhecido como Mamãe Falei, cassado pela Alesp em 2022 por quebra de decoro parlamentar.
O requerimento de Rubinho é um dos 45 pedidos de CPIs feitos pelos vereadores nesta legislatura.
Para a comissão poder "furar" a fila das demais proposições e ser instalada, é preciso haver um acordo entre todos os parlamentares da Casa e, na sequência, que o requerimento passe por duas votações em plenário e alcance ao menos 28 votos.
No pedido, Rubinho diz que a comissão tem a “finalidade de investigar as Organizações Não Governamentais (ONGs) que fornecem alimentos, utensílios para uso de substâncias ilícitas e tratamento aos grupos de usuários que frequentam a região da Cracolândia”.
Segundo o vereador, "a atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs) é de suma importância", no entanto, "a atuação dessas ONGs não está isenta de fiscalização, sendo necessária a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), até porque, algumas delas frequentemente recebem financiamento público para realizar suas atividades".
"Uma CPI pode avaliar a eficácia dos programas oferecidos pelas ONGs, determinando se elas estão alcançando os resultados desejados”, diz o requerimento, que foi assinado por ao menos 24 vereadores, do total de 55.
Os parlamentares de oposição ouvidos pelo g1 negaram a existência de algum acordo para que o pedido do vereador, que era ligado ao MBL até 2022, avance na Casa.
“O Rubinho Nunes é um fanfarrão. Apesar de bom parlamentar, está jogando para a plateia dele e criando um factoide contra uma pessoa honrada e séria como o padre Júlio. Não existe acordo algum para que essa CPI seja criada. O PT é contra e vai obstruir e fazer o que for pra barrar essa ideia equivocada. É uma perseguição injustificada, com objetivo de ganhar votos extremistas na eleição de outubro em cima de uma pessoa que dedica a vida a ajudar os famintos”, disse o líder do PT na Câmara, vereador Senival Moura.
"Tenho certeza que o presidente Milton Leite, pessoa sensata que é, não vai embarcar numa proposta eleitoreira dessa, comprometendo todos os outros acordos para o bom funcionamento da Câmara", completou.
O vereador Adriano Santos (PSB) também diz haver um viés eleitoral na proposta de CPI.
“O vereador está insistindo numa história que não tem aval da maior parte dos parlamentares desde novembro. O PSB é totalmente contra essa CPI. É uma tentativa dele de se promover em cima do discurso de ódio contra o padre Júlio e manter a base política extremista dele ativa nas redes sociais. Uma vez que o MBL se afastou do bolsonarismo, agora eles estão à procura de alguém para tentar conseguir se manter na Câmara Municipal na eleição de outubro”, disse.
A vereadora Luana Alves (PSOL) reforçou as afirmações dos colegas. "Não tem acordo algum sobre isso, até o meu conhecimento. O PSOL vai obstruir o que for possível. Inclusive, isso já foi debatido no colégio de líderes [no ano passado] e já colocamos que é uma perseguição aleatória. Uma perseguição completamente sem nenhum propósito, contra instituições da sociedade civil que fazem trabalho social sério.”
Em nota, a Mesa Diretora da Câmara informou que o tema será tratado no Colégio de Líderes, na volta do recesso parlamentar, que acontece em fevereiro.
Em suas redes sociais, padre Júlio afirmou que não pertence a nenhuma ONG e que a "atividade da Pastoral de Rua é uma ação pastoral da Arquidiocese de São Paulo na Cracolândia".
O que diz autor do pedido de CPI
O vereador Rubinho Nunes negou que tenha objetivos eleitorais com a proposta e tergiversou quando questionado sobre a conquista dos 28 votos necessários em plenário para a instalação da comissão.
“Não posso abrir a tratativa interna, fica complicado. Eu apresentei o protocolo com 25 assinaturas. Precisa de 28 para abrir a CPI. Já conversei na Casa e levantei mais de 30 apoiamentos. Com o final das CPIs em dezembro [de 2023], a expectativa é que, voltando em fevereiro, sejam abertas novas CPIs. E essa CPI é uma das que entra na lista de preferências. (...) Até fevereiro, tudo pode mudar. Mas hoje eu tenho 30 votos necessários para aprovar a criação da medida”, disse.
“O objetivo da CPI vai além das demandas eleitorais. Existem indícios sérios contra diversas ONGs. E isso é de interesse público e da Câmara de SP”, declarou.
Questionado sobre o motivo de investigar o padre Júlio, que não faz parte do quadro societário e decisório de nenhuma ONG, Rubinho negou que esteja perseguindo o padre ou a Igreja Católica.
“O padre Júlio não é uma igreja. É uma pessoa que explora a miséria no Centro de SP. Inclusive ele não é uma unanimidade dentro da Igreja Católica. É uma figura controversa. Ele atua diretamente ligado a essas ONGs. Mas só que, assim como alguns picaretas à moda antiga, que se baseiam em laranjas e empresas de fachada, ele se vale de pessoas que tocam as ONGs”, declarou.
O que diz padre Júlio Lancelotti
Confira a íntegra da nota do padre:
"A instalação da CPIs é uma prerrogativa do poder Legislativo, sendo legítimas em suas atribuições. As CPIs devem ter um objetivo delimitado em sua criação, sendo que neste caso, pelo que se tem notícias, o abjeto que trouxe base para criação desta CPI seria a investigação/fiscalização das "Organizações Não Governamentais ONGS) que fornecem alimentos, utensílios para uso de substâncias ilícitas e tratamento aos grupos de usuários que frequentam a Cracolândia". Ou seja, seria a fiscalização do cumprimento de convênios estabelecidos entre o Poder Público e as organizações conveniadas.
Esclareço que não pertenço a nenhuma Organização da Sociedade Civil ou Organização Não Governamental que utilize de convênio com o Poder Público Municipal. A atividade da Pastoral de Rua é uma ação pastoral da Arquidiocese de São Paulo, que por sua vez, não se encontra vinculada de nenhuma forma às atividades que constituem o objetivo do requerimento aprovado para criação da CPI em questão."
A Arquidiocese de São Paulo , também em nota, informou que acompanha "com perplexidade as recentes notícias veiculadas pela imprensa sobre a possível abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que coloca em dúvida a conduta do Padre Júlio Lancellotti no serviço pastoral à população em situação de rua".
E complementou: "Na qualidade de Vigário Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, Padre Júlio exerce o importante trabalho de coordenação, articulação e animação dos vários serviços pastorais voltados ao atendimento, acolhida e cuidado das pessoas em situação de rua na cidade. Reiteramos a importância de que, em nome da Igreja, continuem a ser realizadas as obras de misericórdia junto aos mais pobres e sofredores da sociedade".
O que diz a Craco Resiste
Por meio de nota, o movimento A Craco Resiste salientou que “não é uma ONG”, mas “um projeto de militância para resistir contra a opressão junto com as pessoas desprotegidas socialmente da região da Cracolândia”.
“Atuamos na frente da redução de danos, com os vínculos criados com as atividades culturais e de lazer. E denunciamos a política de truculência e insegurança promovida pela prefeitura e pelo governo do estado. Quem tenta lucrar com a miséria são esses homens brancos cheios de frases de efeito vazias que tentam usar a Cracolândia como vitrine para seus projetos pessoais. Não é o primeiro e sabemos que não será o último ataque desonesto contra A Craco Resiste”, disse a entidade.
“Inspiramos nossa coragem no fluxo - essas pessoas que sobreviveram ao sufocamento das prisões, à fome, ao racismo e à violência policial. Respeitamos a sabedoria das e a arte das calçadas. Escutamos com atenção as rimas de esquina, os sambas de cachimbo e as ladainhas de palavras certeiras. A multidão negra existe e vive apesar do Estado genocida impulsionado pelo ódio branco. Não dependem de caridade ou projetos sociais. São a própria potência de vida de pé contra os projetos de morte”, completou a entidade.