Política
Comandado por aliados de Lira, Hospital Veredas recebeu R$ 1 bilhão em sete anos
E, no entanto, a instituição se afunda em dívidas e não tem dinheiro nem para pagar os salários
Esta reportagem foi realizada pela piauí em parceria com a Agência Pública
O tradicional Hospital do Açúcar, em Maceió, criado na década de 1950 por usineiros e produtores de cana, passou por uma ampla reforma e reabriu suas portas em abril de 2019 com um novo nome: Hospital Veredas. É um prédio imponente, localizado em frente a um parque, com 264 leitos. Mas o que mais chama a atenção é seu enorme poder de atrair verbas públicas, sobretudo a partir de 2016. Em maio daquele ano, dias depois do afastamento da presidente Dilma Rousseff, o PP, o partido de Arthur Lira, assumiu o controle do Ministério da Saúde. Daí em diante, o Hospital Veredas recebeu uma quantia fabulosa: quase 1 bilhão de reais. Em repasses federais, foram 287 milhões. Em repasses estaduais, 271 milhões. E, em repasses municipais, mais 413 milhões. Com tanto dinheiro no cofre, acabou recebendo mais recursos do que a própria Santa Casa de Maceió, que atende mais pacientes do que o Veredas.
“É um montante altíssimo”, espantou-se José Wilton da Silva, presidente do Conselho Estadual de Saúde de Alagoas. Ele já adiantou que fará uma análise detalhada dos repasses ao hospital e, se for o caso, vai propor uma auditoria nas contas do Veredas. “Precisamos saber por que o Veredas recebe mais do que os outros hospitais e por que tem uma dívida há muitos anos incontrolável.” O momento solene de abertura da torneira federal que começou a jorrar dinheiro para o Veredas em 2016 só aconteceu no ano seguinte, no dia 26 de julho de 2017.
Naquela data, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, PP do Paraná, esteve em Maceió para uma visita ao hospital, que ainda se chamava Hospital do Açúcar. Ao ministro, juntaram-se o deputado federal Arthur Lira e seu pai, o então senador Benedito de Lira, ambos do PP. Em uma solenidade, a trinca anunciou a liberação de 6 milhões de reais para o hospital. “Nós estamos muito felizes que, realmente, o Ministério da Saúde volta os olhos para essa casa, e com o apoio integral do senador Benedito de Lira e do deputado Arthur Lira”, festejou o presidente do hospital, o médico Edgar Antunes Neto. Era o dinheiro para a reforma que, dois anos depois, estaria concluída.
Antes de partir da solenidade em Maceió a bordo de um avião da FAB, o ministro Ricardo Barros fez questão de dizer que a liberação do dinheiro atendia uma demanda dos Lira. Num vídeo, Barros deixou gravado que a visita tinha sido “interessante” e agradeceu a “insistência” do deputado e do senador pelos recursos. “Liberamos 6 milhões de reais para custeio do Hospital do Açúcar a pedido do deputado Arthur Lira, do senador Benedito de Lira. É muito importante que nós possamos recuperar o Hospital do Açúcar para um atendimento cada vez melhor da saúde de todo o povo de Alagoas”, destacou. Depois disso, veio o derrame de dinheiro público, que, só em verba federal, totalizou 287 milhões de reais.
Entre os hospitais filantrópicos de Maceió, o Veredas é o maior em número de leitos e de funcionários, superando a Santa Casa e o Hospital Sanatório. No entanto, atende menos gente e, portanto, tem custo menor. Os atendimentos ambulatoriais do Veredas são bastante inferiores aos da Santa Casa, por exemplo. Entre 2020 e 2022, a Santa Casa teve uma média anual de 378 mil atendimentos, contra apenas 67 mil do Veredas. Seus custos também são muito menores que os da Santa Casa. No ano passado, o custo dos atendimentos da Santa Casa registrados no SUS chegou a 32 milhões de reais, enquanto o do Veredas não passou de 7 milhões. Além dos atendimentos e dos custos, as internações também são menores. A Santa Casa fez 15 904 internações entre 2021 e 2022, contra 10 720 do Veredas. Os gastos do Veredas com internações ficaram abaixo até do que as despesas de duas instituições com estruturas até menores, como o Hospital da Mulher e o Hospital Universitário.
Mesmo assim, o Veredas é o destino final de muito dinheiro. Nos últimos sete anos, o PP foi estrela no Ministério da Saúde. Estava no comando da pasta no governo Michel Temer e, durante o governo Jair Bolsonaro, teve forte presença nas estruturas internas do ministério, sobretudo nos setores que liberavam verbas. Em junho de 2021, o PP teve uma baixa no Ministério da Saúde: o então diretor do Departamento de Logística, Roberto Ferreira Dias, indicado pelo Centrão, foi demitido sob suspeita de pedir propina na compra de vacina contra a Covid-19. Mas o domínio do Centrão prevaleceu em cargos estratégicos e só começou a perder espaço com a posse do presidente Lula e a nomeação da ministra Nísia Trindade, que comandou por seis anos a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Por isso, o Centrão – no qual Arthur Lira e o PP são estrelas de primeira grandeza – insiste tanto em ocupar o Ministério da Saúde, cujo orçamento é de quase 190 bilhões de reais e está entre os maiores da Esplanada.
Se em Brasília a disputa pelo cofre da Saúde é acirrada, em Maceió o cofre do Veredas está dominado. Desde 2017, só aliados ou parentes de Arthur Lira administraram a massa de dinheiro destinada ao Hospital Veredas. De julho de 2017 a outubro de 2022, o cargo de diretor financeiro do hospital foi ocupado por Adeilson Loureiro Cavalcante, político ligado a Lira que já figurou em escândalos na Saúde. Com a saída de Cavalcante, o cargo passou a ser ocupado por Pauline Pereira, prima de Lira. Ela também ocupa uma das dezesseis cadeiras do conselho deliberativo do hospital, onde César Lira, outro primo do presidente da Câmara, também tem assento. (Uma rápida descrição dos laços de sangue e de verbas: Pauline Pereira é irmã de Joãozinho Pereira, o chefe da Codevasf, o epicentro dos recursos do orçamento secreto em Maceió. César Lira, por sua vez, acumula o cargo no conselho do hospital com o posto de superintendente estadual do Incra. O Incra de Alagoas é a quarta unidade do instituto que mais recebeu pagamentos no país durante o governo Bolsonaro.
Apesar da fartura de recursos públicos, o Hospital Veredas encontra-se em graves dificuldades financeiras. Uma investigação conjunta da piauí e da Agência Pública mostra que o agravamento dos problemas do hospital coincide com o começo da gestão do PP no Ministério da Saúde, em Brasília. No último dia 16 de junho, os funcionários entraram em greve porque chegaram a ficar três meses sem receber salário neste ano e, até hoje, não receberam o décimo-terceiro do ano passado.
O Ministério da Saúde, por meio de uma nota, informou que “a pasta não tem nenhuma interferência na gestão administrativa do estabelecimento [Veredas] e nenhuma indicação foi realizada pela atual gestão”. Procurado pela reportagem, o deputado Arthur Lira não quis se manifestar. Fica em aberto a questão central: como o hospital sob o comando da turma do deputado recebeu tanto dinheiro e não tem recursos nem para pagar salários?
A piauí e a Agência Pública identificaram contratações ligando o cofre do Hospital Veredas com escritórios de advocacia. Em 2 de fevereiro de 2018, por exemplo, o Hospital Veredas contratou o escritório do advogado Adriano Costa Avelino para atuar em processo de dívidas do hospital com a Eletrobrás. Apesar da crise financeira por que passava, o hospital firmou um contrato alto que previa o pagamento ao advogado em duas parcelas, independentemente do resultado da ação. Diz o contrato, ao qual a reportagem teve acesso: “Os valores pagos ao contratado (…) não estão sendo pagos em razão da apresentação de qualquer resultado ou condição, inclusive na hipótese de realização de acordo judicial e/ou extrajudicial, com ou sem redução de valores”.
Procurado pela reportagem, Avelino confirmou que recebeu os 2,8 milhões de reais e disse que o valor é proporcional ao montante do processo, avaliado na época em 32 milhões de reais. Advogados ouvidos pela piauí consideraram o valor do pagamento dos honorários elevado, e que o hospital poderia ter negociado um preço melhor, deixando um pagamento maior para o caso de vitória.
Em resposta, Avelino disse que obteve uma decisão favorável em primeira instância, para que houvesse isenção da cobrança do ICMS sobre a dívida total, mas que houve um recurso e, desta etapa em diante, outros advogados começaram a atuar no processo. Conforme os autos do processo, Adriano Avelino passou a representar o hospital em 7 de maio de 2018, assumindo o lugar de Joaquim Pontes Miranda Neto. Dois anos depois, Pontes Miranda Neto reassumiu o caso em conjunto com Filipe Pedroza Antunes, conforme uma nova procuração assinada em outubro de 2019 por Edgar Antunes – presidente do Veredas e pai de Filipe Antunes –, mas que só foi anexada ao processo um ano depois, em 4 de outubro de 2020. “Eu continuo lá nos autos, mas a condução é feita por vários advogados”, disse Avelino.
Avelino é o advogado trabalhista de Arthur Lira. Desde 2013, já atuou em pelo menos onze processos trabalhistas em favor do deputado. Lira parece ter muita confiança em Avelino, tanto que tem feito campanha para que o advogado seja nomeado para uma vaga no Tribunal Superior do Trabalho (TST). A OAB está em fase de análise dos nomes inscritos para indicar seis deles ao TST, que depois formará uma lista tríplice da qual o presidente Lula deverá escolher um. Avelino é candidatíssimo.
A piauí e a Agência Pública pediram acesso aos balanços financeiros do Veredas, ou, pelo menos, informações sobre pagamentos a fornecedores e escritório de advocacia, mas o hospital não quis fornecer. Analisando-se ações movidas pelo Veredas na Justiça, no entanto, é possível constatar que a instituição está habituada a contratar advogados com projeção nacional e laços com o poder em Brasília – o que não é irregular. Em 2018, por exemplo, contratou o advogado Eduardo Martins, filho do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins. Entre 2018 e 2019, Eduardo assinou quatro petições no processo em que o Veredas pede imunidade tributária por ser uma entidade filantrópica. Procurado pela reportagem, Eduardo achava que havia atuado pelo hospital “dez anos atrás”, mas, apresentado às petições mais recentes, reconheceu que se equivocou. Ele não quis informar os valores que recebeu.
O Veredas também já contratou a advogada Roberta Maria Rangel, mulher do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. Seu escritório, o Rangel Advocacia, atuou numa ação movida pelo Veredas junto ao Conselho Nacional de Justiça, órgão que fiscaliza o Judiciário. Na ação, o hospital alegou que um desembargador de Alagoas perseguia a fundação que administra o Veredas em razão de desavenças com Edgar Antunes, o presidente do hospital, mas perdeu a causa. Procurada pela reportagem, Rangel confirmou sua atuação no processo e não comentou os honorários. “Os dados devem ser preservados por imposição contratual e legal”, disse ela, por meio de sua assessoria.
Diante da falta de informações do hospital e de advogados, não é possível estimar quantos milhões de reais foram gastos com honorários enquanto a entidade afunda em dívidas e não paga salários. Mas fontes ouvidas em Maceió acreditam que os contratos de advocacia do Veredas são dutos por onde escoam milhões de reais.
Filipe Pedroza Antunes, de 29 anos, não é o único membro da família do presidente do Veredas com vínculos com o hospital. Outro filho de Edgar Antunes, Edgar Leahy Antunes, 41 anos, é membro do conselho deliberativo do Veredas. O empresário Rodrigo Pedroza Antunes, 27 anos, também filho do presidente, já trabalhou no hospital, conforme registros a que a reportagem teve acesso. Uma filha, Karine Leahy Antunes, também trabalha no Veredas. Hoje, tem uma clínica de odontologia, instalada num terreno do hospital. Por fim, Marcos Pedroza, cunhado de Edgar que, por coincidência, tem o mesmo sobrenome, é chefe de gabinete do presidente do hospital. Procurado, Edgar Antunes não retornou aos contatos da reportagem.
O apadrinhado de Arthur Lira que por cinco anos dirigiu as finanças do Veredas é Adeilson Loureiro Cavalcante, ex-secretário de Saúde de Maceió e ex-diretor administrativo do Hospital Sanatório, uma instituição filantrópica, assim como Hospital Veredas. Em 2011, seu nome apareceu numa lista dos denunciados pelo Ministério Público Federal no âmbito de uma acusação de falcatrua no Hospital Sanatório. Os denunciados eram suspeitos de participar de um esquema que expedia guias de exames que nunca foram feitos no hospital. Com isso, recebiam reembolsos do SUS sem ter feito gasto algum. Nos exames de mamografias – todos fictícios – constavam nomes de pacientes como Suzana Vieira, Carolina Dieckmann, Ivete Sangalo, Bianca Rinaldi, Letícia Spiller, Solange Couto, Rafaela Fischer, Juliana Paes e Vera Holtz.
Em 2016, o deputado Arthur Lira indicou Cavalcante ao cargo de secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde em Brasília. Logo, ele ganhou o dom da onipresença. Em 2017, virou conselheiro e diretor financeiro do Veredas, na época em que a instituição começava a receber o alto fluxo de verbas públicas. Como a lei proíbe o acúmulo desses cargos, o então ministro Ricardo Barros anunciou que Cavalcante podia ocupar os cargos em Maceió, pois estava “licenciado” do seu posto no Ministério da Saúde, em Brasília. Na prática, ele continuava operando nas duas pontas. Uma consulta ao Diário Oficial da União mostra que Cavalcante assinou dezenas de documentos no segundo semestre de 2017. Procurado, Barros disse que “a nomeação é absolutamente regular” e acrescentou: “Quanto ao Ministério da Saúde não há absolutamente nada que não esteja 100% na regra nos fatos narrados”.
No dia 4 de outubro de 2018, Cavalcante assinou – na condição de ministro da Saúde substituto! – a portaria nº 3225, que habilitou o município de Maceió a receber 5 milhões de reais, com destino carimbado: o cofre do Hospital Veredas, onde Cavalcante continuava sendo conselheiro e diretor. A portaria não traz o nome do hospital, mas sim seu código de identificação: CNES 2006448. Teve mais: nos últimos dias do governo Temer em 2018, quando já estava de saída do Ministério da Saúde, Cavalcante deu pareceres favoráveis à aprovação de três convênios que somavam 44,1 milhões de reais. Pouco depois, quando o comando do Ministério da Saúde não era mais de um indicado do PP, os convênios foram cancelados. O Veredas tinha completado o bingo do impedimento técnico para receber o dinheiro: Segundo o despacho de cancelamento, o hospital “não apresentou estatuto; ata de eleição da diretoria; certidões do FGTS, SRF/PGFN, INSS, Receita Estadual, Receita Municipal. Declaração de Funcionamento Regular. Inadimplência no CADIN”. A reportagem tentou contato com Adeilson Cavalcante, mas não obteve retorno.
Os privilégios do Veredas na distribuição de recursos públicos ficaram mais evidentes com a chegada da pandemia. Em 2016, quando o Ministério da Saúde já estava com o PP, o hospital havia recuperado o chamado Cebas, um certificado importantíssimo que isenta um hospital filantrópico do pagamento de impostos e permite que faça convênios com o poder público. O resgate do Cebas foi uma novela. No governo Dilma Rousseff, o Ministério da Saúde recusou duas vezes a emissão do documento em razão do descumprimento de três normas essenciais. A última recusa saiu numa nota técnica de 18 de novembro de 2015. Noves meses depois, já sob o governo Temer, tudo mudou. Em uma decisão, fundamentada em menos de duas linhas, um juiz da Justiça Federal em Brasília suspendeu as inscrições em dívida ativa lançadas contra o hospital. O Ministério da Saúde informou que o Cebas do Veredas segue vigente.
Com a mudança, o Veredas passou a receber um tratamento preferencial em relação aos demais hospitais na divisão de recursos do SUS, em especial na pandemia. No ano de 2020, até o fim de agosto, no primeiro pico da doença, o Ministério da Saúde mandou 54,1 milhão de reais para a Secretaria Municipal de Saúde de Maceió e para algumas unidades hospitalares localizadas na cidade, mas o grosso foi destinado para o Veredas: 31,9 milhões de reais. Ou seja: o Veredas levou 60% dos recursos numa cidade com 249 estabelecimentos públicos e privados vinculados ao SUS. A fatia do Veredas foi quase o triplo do que foi destinado à Santa Casa, que ficou com apenas 11,3 milhões. A divisão faria sentido se o Veredas concentrasse a maior parte dos atendimentos, mas isso não aconteceu.
De agosto até o final de 2020, o Veredas continuou atraindo dinheiro para o enfrentamento à pandemia. Recebeu mais 7 milhões e fechou o ano com um total de 38,8 milhões de reais. E, no entanto, entre setembro e dezembro, o hospital registrou números insignificantes de atendimento de pacientes de Covid – menores do que a Santa Casa, o Hospital da Mulher e o Hospital Metropolitano. Em setembro, por exemplo, o Veredas não teve um único paciente de Covid, seja na UTI, seja na enfermaria, segundo as informações da Prefeitura de Maceió. Em contraponto, num único dia de setembro, dia 15, a Santa Casa tinha seis pacientes internados. Com base nesses números, constata-se que o Veredas encheu os cofres na pandemia e não precisou atender quase ninguém.
O Veredas consegue dinheiro até quando não era para ele. Em 2021, o próprio deputado Arthur Lira, que concentrava todo o poder de distribuição do dinheiro do orçamento secreto, despachou 10 milhões de reais para o hospital. Curiosamente, o Portal da Transparência informa que o dinheiro tinha outro destino: 7,6 milhões iriam para a Secretaria Municipal de Saúde de Maceió e 2,3 milhões estavam destinados à Associação Pestalozzi de Maceió, que é um centro especializado em reabilitação. O empenho que mandava a verba para essas duas entidades foi cancelado e os recursos foram redirecionados para o Veredas.
Imbatível na captura de verbas públicas, o hospital nunca perde. Quando a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, mandou suspender os repasses do orçamento secreto, o Veredas tinha um empenho a seu favor de 8,4 milhões de reais. Com a decisão de Weber, o dinheiro nunca chegaria. Mas, um mês e meio depois, a ministra voltou atrás e reativou as remessas. Em questão de dias, os 8,4 milhões já tinham vencido toda a burocracia e foram transferidos para o Veredas via Fundo Municipal de Saúde de Maceió. Esse foi um daqueles repasses que nenhum político assumiu, mas o fato é que, no primeiro ano de Lira na Presidência da Câmara, 18,4 milhões do orçamento secreto pingaram na conta do hospital.
O Hospital Veredas é uma caixa-preta que muitos órgãos fiscalizadores não fazem questão de abrir, e outros, quando tentam, não conseguem. Em setembro de 2020, o Ministério Público Federal instaurou um inquérito civil depois de receber uma denúncia anônima relativa a repasses federais. O caso pouco avançou até hoje. Em 21 de junho deste ano, um documento do MP reclama da “insuficiência das informações prestadas até então sobre a prestação de contas da aplicação destes recursos, assim como a não publicidade e transparência da destinação dos recursos”.
Já a Promotoria de Justiça das Fundações do Estado, responsável por fiscalizar os gastos de entidades como o Veredas, esteve sob o comando de Failde Soares Ferreira de Mendonça durante 22 anos. Ela se aposentou em 2019, e atualmente trabalha para o Veredas como consultora titular de gestão. “Presto consultoria na área de minha especialidade, na área de gestão, porque é nisso que sou especialista. Minha seriedade e minha competência foram reconhecidas pelo mercado privado”, disse. O filho de Failde também ganhou um cargo no hospital. Roberto Fleury Ferreira de Mendonça, de 27 anos, é engenheiro civil do Veredas.
Mendonça deixou o cargo de promotora de Justiça coberta de elogios de Edgar Antunes, presidente do Veredas, que, em uma postagem nas redes sociais do hospital, chamou-a de “mulher guerreira que não abre mão de estar na defesa de quem mais precisa” e dona de uma “longa folha de serviços em benefício dos alagoanos durante todo o período que desempenhou suas funções como promotora e curadora das fundações no Ministério Público”. A reportagem pediu acesso aos balanços fiscais do Veredas ao novo promotor das fundações do MP alagoana, Givaldo Lessa. Ele disse que não poderia dar acesso. Lessa é amigo de Mendonça. Em seu gabinete, há uma foto da ex-promotora.
Uma evidência de que o cargo de diretor financeiro do Hospital Veredas não era um posto técnico – mas uma indicação política – se materializou no final do ano passado. Adeilson Loureiro Cavalcante, que ocupava o cargo desde 2017, foi embora no momento em que seu irmão, o então deputado estadual Léo Loureiro, resolveu abandonar o PP e aderir ao grupo de Paulo Dantas, que então concorria ao governo de Alagoas. Ao que tudo indica, Arthur Lira não tinha como perdoar a traição. Afinal, Dantas, que acabou eleito governador, é filiado ao MDB e, para piorar, é aliado do senador Renan Calheiros, o maior adversário alagoano dos liristas.
Ao assumir a diretoria financeira, Pauline Pereira, prima de Lira e ex-prefeita da cidade alagoana de Campo Alegre, chegou pedindo voto para o seu candidato e dos Lira ao governo do estado, o derrotado Rodrigo Cunha. “É um grande desafio que estou assumindo, pois o hospital está praticamente parado por falta de financiamento do estado de Alagoas”, disse ela. “Por isso, é muito importante que votem em Rodrigo Cunha para que o hospital Veredas tenha a garantia de atender as pessoas.”
A situação financeira do Veredas, de fato, estava ruim, mas não era por falta de verbas – e ficou pior. No fim de 2022, quando Cavalcante cedeu a cadeira para Pauline Pereira, o quadro, de fato, era bastante precário, mas, de lá para cá, se agravou ainda mais. O hospital acumula dívidas crescentes em todos os setores: tributário, previdenciário e trabalhista. Em valores recentes, passam de 133 milhões de reais. Faltam recursos até para pagar as parcelas das dívidas trabalhistas, que somam 21,5 milhões. Segundo dados da Justiça do Trabalho, são 321 processos trabalhistas para um universo de menos de 2 000 funcionários.
Em despachos nos meses de fevereiro, maio e junho deste ano, o juiz que centraliza a execução das dívidas trabalhistas do hospital classificou a situação do Veredas como “tenebroso cenário”. “A executada [hospital Veredas], de forma recorrente, não tem honrado com o compromisso de quitar a sua dívida trabalhista”, escreveu o juiz. “O número de parcelas inadimplidas só vem aumentando. (…) Observa-se, de forma preocupante, que inúmeras (novas) ações vêm sendo ajuizadas”. O magistrado ainda concluiu que não se “consegue extrair qualquer sinal que sugira uma perspectiva positiva no cenário acima relatado”.
A diretora Pauline Pereira reconhece os problemas, mas transfere a culpa para o governo de Alagoas. “O governo do Estado deve ao Veredas quase 19 milhões de reais em serviços prestados pelo hospital no período de outubro de 2022 a maio de 2023”, disse ela, num vídeo publicado nas redes sociais. “Quem deve pagar é o governador Paulo Dantas. Dezenove milhões é um valor suficiente para colocarmos em dia o salário dos nossos funcionários.” O governo estadual admite que tem pagamentos em atraso do primeiro semestre deste ano, mas contesta o valor de 19 milhões sem apontar o valor correto. O que não se entende é como um atraso agora pode explicar um buraco tão grande num hospital que recebeu tanto dinheiro por tanto tempo. A reportagem procurou Pauline Pereira, mas ela não respondeu às tentativas de contato por meio de WhatsApp e e-mail, nem atendeu às ligações.
Além dos problemas de gestão, o Veredas está enrolado com a Vigilância Sanitária, que já aplicou três multas ao hospital desde o início da pandemia, segundo mostra um levantamento no Diário Municipal da Prefeitura de Maceió. A primeira multa, de dezembro de 2020, decorreu da ausência de registros internos de certos exames de sangue — hepatite, sífilis, HIV/Aids, doença de Chagas – colocando a população em “risco sanitário”. Os fiscais consideraram a “infração de natureza gravíssima”. Em maio de 2021, nova multa por “infração gravíssima”, devido à presença de “entulhos e odor fétido de fossa, água de origem empoçada e ausência de capinação na área externa”. A terceira multa, de natureza “grave”, saiu em novembro de 2021, por “contrariar normas legais pertinentes no controle de poluição do solo, instalar e operar estação de tratamento de esgoto sem licença (…) e sem projeto (…).” Os fiscais registram que, em dois casos, o hospital, mesmo sabendo das irregularidades, não tomou providências. Como nem defesa apresentou, foi julgado à revelia nas duas vezes.
“Onde está o dinheiro?”, perguntava, megafone à mão, um manifestante no protesto que marcou o início da greve dos funcionários do Veredas, no dia 16 de junho. “Vamos ocupar a rua. Vamos mostrar para a sociedade e cobrar uma posição dos órgãos de fiscalização”, anunciou. Na manifestação, denunciou os salários atrasados, a falta do décimo-terceiro e protestou contra demissões. “Mas retaliar, perseguir, demitir, isso faz parte da gestão”.
Quatro dias antes, os funcionários fizeram uma reunião para discutir a greve. Uma copeira contou que foi despejada de sua casa porque não teve condições de pagar o aluguel e voltou a morar com a mãe. Outra copeira contou que o dono do imóvel onde vive levou sua geladeira como parte do pagamento do aluguel atrasado. Uma técnica de enfermagem lembrou sua angústia por não ter tido condições de comprar presente para o filho de 2 anos no último Natal porque o hospital não pagou o 13º salário integral. Um maqueiro relatou que não consegue mais dormir em razão das dívidas acumuladas e está dependendo da ajuda da família para sobreviver. Os servidores, que pediram para que seus nomes não fossem divulgados por receio de retaliações, denunciaram ainda que convivem com a falta de itens básicos para trabalhar, inclusive medicamentos, alimentos na cozinha e até papel higiênico.