Política
Em quatro anos no comando da Câmara, Lira acumulou poder e faíscas com STF, governo e imprensa
Pepista também diversificou dinâmica do orçamento secreto e viveu embates com esquerda
Arthur Lira encerra mandato de quatro anos como presidente da Câmara - Lula Marques/Agência BrasilPrestes a encerrar o mandato de presidente da Câmara dos Deputados após quatro anos no posto, Arthur Lira (PP-AL) fez de 2024 um ano em que, na busca pela cristalização de um legado político próprio e pela pavimentação de um caminho que o garanta algum nível de poder após deixar o cargo, pudesse consolidar características que vinha manifestando desde os primórdios de sua gestão, iniciada em fevereiro de 2021. Em linhas gerais, o pepista manteve sua atuação como principal líder do centrão, conduziu as articulações pela aprovação da regulamentação da reforma tributária e se engajou novamente em uma série de atritos com atores da esquerda, o Poder Executivo, o Supremo Tribunal Federal (STF) e a imprensa.
Neste último ano de sua jornada à frente da Casa, o presidente mergulhou em intensas costuras políticas para tentar manter sua influência na escolha do próximo presidente da Câmara e ampliar as chances de eleger um nome com o qual tenha alinhamento e diante do qual possa ter certo prestígio. Das articulações resultou a escolha de Lira pela figura do líder do Republicanos, Hugo Motta (PB), o que lhe fez romper com o amigo e até então seu candidato na disputa, Elmar Nascimento (União-BA) – a fissura ajudou a delinear os rumos assumidos pelo pleito, hoje praticamente concentrado na figura de Motta, que deverá enfrentar a oposição apenas do Psol, partido com 13 integrantes.
Hugo Motta (à esquerda) e Arthur Lira (à direita) durante pronunciamento à imprensa sobre candidatura à presidência / Marina Ramos/Câmara dos Deputados
Ao olhar pelo retrovisor, o cientista político Leandro Gambiati acrescenta ainda uma outra característica que o modo Lira de conduzir a Câmara imprimiu a este 2024: a manutenção do ritmo dos trabalhos. “Dos quatro anos dele como presidente da Casa, eu diria que este último foi particular diante do ciclo eleitoral municipal. Logicamente, como todo ano eleitoral, você tem uma certa pausa nas votações – isso ficou bastante evidente entre maio, junho e outubro, por exemplo –, mas falo do volume de discussões e de assuntos tratados. A gente pode considerar que, mesmo com a eleição, a Câmara foi muito ativa, dando prioridade à agenda econômica. Acho que foi um ano em que, apesar da atividade eleitoral, a Câmara se manteve ativa e o Lira continuou sendo um ator estratégico dentro da República.”
Cardápio
O intervalo de 2024 foi também um momento em que a Câmara aprovou, sob a regência de Lira, pautas voltadas à reconstrução do Rio Grande do Sul, medidas de auxílio a municípios atingidos por desastres e calamidades públicas e um conjunto de propostas de interesse das bancadas ruralista, evangélica e da bala, assim como ocorreu em outros anos. Figura nessa lista o controverso Projeto de Lei (PL) 1904/2024, de iniciativa da bancada evangélica, que foi apelidado por atores civis de “PL do estupro” por equiparar o aborto ao crime de homicídio quando o procedimento for realizado após 22 semanas de gestação.
Tendo tido a urgência aprovada em um rito expresso de 24 segundos, sem debate e após uma articulação entre líderes reacionários e Arthur Lira, o texto provocou uma onda de protestos pelo país e terminou sendo encaminhado pelo pepista para análise de uma comissão especial que não chegou a operar – para analistas que acompanham o jogo da Câmara, o envio teria sido apenas uma estratégia de Lira para não assumir publicamente a derrota. A dinâmica da disputa atiçou o antagonismo entre o presidente e grupos de esquerda, que ganhou evidência também em outros momentos. Entre as críticas do segmento ao líder do centrão, estão, por exemplo, a falta de previsibilidade nas votações de plenário, cuja pauta passou a ser divulgada por Lira apenas momentos antes do início das sessões, além de outras condutas.
Representantes de organizações feministas durante protesto contra PL 1904 em frente à residência oficial de Arthur Lira, em Brasília (DF)/ Foto: Matheus Alves
Não menos polêmica foi ainda a aprovação – nesse caso, em 2022 – da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 39/2011, a famigerada “PEC das Praias”, que acaba com a propriedade exclusiva da União sobre os terrenos de marinha e, com isso, facilita a privatização dessas áreas. A medida passou quase despercebida pelo plenário da Câmara e, ao chegar no Senado, atraiu os holofotes, ganhando as redes sociais e deixando um novo rastro de críticas a Lira e aliados.
O cientista político Danilo Morais, mestre em Poder Legislativo e doutorando do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (UnB), assinala que a inclinação demonstrada por Arthur Lira aos interesses dos grupos mais localizados à direita do espectro político não imprimiu ineditismo no histórico de condução da Câmara dos Deputados, instituição pela qual já passaram ao menos 50 presidentes desde a proclamação da República, em 1889.
“Um presidente da Câmara, como líder de uma ampla coalizão de deputados que o elegeram, se apoiará inevitavelmente nas forças reais que compõem as maiores bancadas – associadas, no caso brasileiro, ao poder do latifúndio, à autoridade da classe dominante, que se reflete na bancada da bala, e aos estratos conservadores religiosos. Ignorar esses fatores seria esvaziar o próprio poder da presidência. Lira é um representante dessas forças, mas é sobretudo um gestor pragmático, da ‘realpolitik’ [política fundada em questões práticas em detrimento de bandeiras ideológicas], sempre atento às oportunidades de maximização da sua autoridade política”.
A respeito especificamente da relação entre o pepista e os grupos mais ideológicos da Casa, Morais observa que a postura de Lira tem sido proporcional à dimensão dessas forças no parlamento. “Na sua relação com a oposição bolsonarista, o presidente promove um certo alinhamento estratégico, manejando sua proximidade com a bancada sempre que convém [na busca] por mais concessões ao governo federal. Quanto à esquerda propriamente dita, por sua inexpressividade [numérica] em termos de bancada, já que o PT se converteu quase que completamente à gramática neoliberal, eu diria que o sentimento do presidente Lira varia em termos de desprezo à indiferença”, interpreta Morais, ao mencionar o atual cenário de equacionamento de forças na Câmara, que tem hoje a versão mais conservadora da história.
Arthur Lira (PP-AL) durante votação no plenário da Câmara dos Deputados /Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Câmara x STF x Executivo
Também chama a atenção, no filme dos quatro anos de Lira à frente da Câmara, o caráter de ampliação progressiva de poder que o pepista foi conduzindo a Casa a conquistar na relação entre Legislativo, Executivo e Judiciário. O maior empoderamento da Câmara se deu no mesmo compasso da crise institucional provocada pelo orçamento secreto, política gestada durante o governo Bolsonaro que consiste na administração de parte do orçamento público pelos parlamentares sem transparência e sem rastreabilidade.
Multiplicada em diferentes modalidades ao longo dos últimos anos, a prática abriu uma fenda na relação com o governo Lula desde antes do início da gestão, ainda em dezembro de 2022, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional o orçamento secreto. Desde então a política tem gerado sobressaltos na relação entre os Poderes. A instabilidade da relação entre a tríade dos Poderes também se verificou em outros momentos, com destaque para a prisão, em março deste ano, do deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido-RJ), acusado de ser um dos mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol), atentado em que também foi morto o motorista da parlamentar, Anderson Gomes.
Em meio ao clamor popular que circunda o caso Marielle e com uma votação apertada, o plenário da Câmara acabou aprovando a manutenção da prisão em abril, mas não sem novas fissuras na relação com o STF. Apesar de defendida por setores da esquerda, a detenção de Brazão despertou, nos bastidores, uma série de controvérsias entre parlamentares de diferentes grupos políticos, para os quais a Corte teria desrespeitado prerrogativas do Legislativo – pela Constituição Federal, os membros do Congresso Nacional só podem ser presos em caso de flagrante de crime inafiançável.
Sessão da Câmara dos Deputados que confirmou a prisão preventiva de Chiquinho Brazão / Foto: Lula Marques/Agência Brasil
“Na relação com os Poderes, acho que Lira acerta ao defender as prerrogativas do parlamento diante de desbordamentos promovidos pelo STF, mas erra, no entanto, ao chantagear explicitamente o Poder Executivo. A autoridade do parlamento numa democracia é dinâmica e não se baseia apenas na legitimidade conferida pelas urnas, mas também nos sinais de retidão moral e de compromisso com os interesses da cidadania, que são continuamente emitidos. Nesse sentido, o Congresso Nacional nunca foi tão venal. Ao mesmo tempo em que se empodera perante o governo, o Congresso faz uma clivagem muito específica, o controle do orçamento discricionário. Lira é a síntese dessa mercantilização parlamentar”, analisa Danilo Morais.
Imprensa
Marcada por intempéries e indocilidades de ambos os lados, a relação do pepista com a imprensa também foi um dos pontos de realce ao longo dos quatro anos de gestão Lira na Câmara. O primeiro e mais evidente sobressalto surgiu ainda em fevereiro de 2021, quando, em meio à pandemia da covid-19 e poucos dias depois de assumir o posto de presidente, o alagoano ordenou que o comitê de imprensa da Casa fosse retirado do local onde estava desde a construção do prédio, em 1960, para dar lugar ao que seria seu futuro gabinete presidencial.
Destinado à oferta de estrutura de trabalho para os jornalistas que cobrem rotineiramente a Casa, o comitê tinha, por desejo de Oscar Niemeyer, o arquiteto do prédio, acesso direto ao plenário da Câmara e aos parlamentares, assim como uma vista privilegiada da parte frontal do edifício do Congresso Nacional, em cujo gramado costumam se concentrar manifestantes que se reúnem para atos políticos de maior porte. A localização do comitê era, portanto, considerada estratégica para o trabalho dos profissionais de imprensa.
A iniciativa de substituir o espaço pelo gabinete presidencial era um desejo de outros presidentes que antecederam Arthur Lira, entre eles João Paulo Cunha (2003-2005) e Arlindo Chinaglia (2007-2009), ambos do PT; Eduardo Cunha (2015-2016), do MDB; e Rodrigo Maia (2016-2017), então filiado ao DEM. Em virtude das variadas reações críticas, nenhum deles chegou a executar o plano, algo que Lira concretizou em apenas poucas semanas à frente do cargo, à revelia dos apelos públicos feitos por entidades representativas dos jornalistas e outras organizações civis.
A isso se sucedeu um conjunto de outras faíscas na relação entre o pepista e os jornalistas, que foi ganhando um ar cítrico especialmente pelo fato de Lira ter se colocado à disposição para coletivas de imprensa em escassos momentos nestes quatro anos. O mandatário substituiu as sabatinas pelos chamados “pronunciamentos”, igualmente escassos e sempre acompanhados do aviso – dado por sua assessoria – de que “o presidente não vai responder perguntas”.
Arthur Lira (PP-AL) durante um de seus pronunciamentos à imprensa em 2024 / Marina Ramos/Câmara dos Deputados
“Há um balanço negativo nessa relação dele com a imprensa porque houve muitos prejuízos para o acesso a informações de interesse público. Os presidentes anteriores concediam entrevistas com amplo espaço para perguntas, enquanto o Lira acabou trocando esta dinâmica por uma rotina de meras declarações ou pronunciamentos rápidos, muitas vezes também repletos de agressividade. Isso sem contar com os achaques judiciais à imprensa por conta de reportagens sobre sua trajetória política e que contrariavam seus interesses. Então, o conjunto da obra da relação do Lira com a imprensa e com a informação de interesse público é algo que tem um balanço bem negativo”, comenta o jornalista Pedro Rafael, da coordenação-geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF).
Na mesma sintonia, a presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Samira de Castro, lembra que a postura do pepista fez com que Lira direcionasse seu alvo para veículos como Congresso em Foco, ICL Notícias, Agência Pública, entre outros que por ele foram acionados judicialmente por terem veiculado reportagens que lhe desagradavam pessoalmente. “A relação do presidente com a imprensa não foi das melhores. Basta a gente fazer um rápido retrospecto para lembrar que, em 2023, por exemplo, ele abriu uma verdadeira ofensiva judicial contra veículos de imprensa. O Lira é um líder, um homem público que se comunicou mal com a imprensa durante todo o seu período de presidência da Câmara, o que não condiz em momento algum com a postura de um homem público que preside uma casa de leis”.
Edição: Nathallia Fonseca