Política

Como Bolsonaro liderou o esquema de ataques às urnas, segundo a PGR

Bolsonaro, Braga Netto e outras 32 pessoas (entre civis e militares) foram denunciados por mais de sete crimes

Por Lupa 20/02/2025 14h02
Como Bolsonaro liderou o esquema de ataques às urnas, segundo a PGR
Jair Bolsonaro durante live realizada em 29 de julho de 2021. - Foto: Reprodução

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-candidato a vice-presidente general Walter Braga Netto (PL) lideraram uma organização criminosa que praticou atos contra a democracia e que buscava deslegitimar o resultado das eleições de 2022. Esses apontamentos estão na denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), na terça-feira (18), ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Segundo a investigação, o plano antidemocrático teve início ainda em 2021 com ataques sistemáticos ao sistema eletrônico de votação, por meio de declarações públicas e postagens na internet. A estratégia evoluiu com a disseminação de narrativas falsas sobre as urnas a fim de criar um ambiente de desconfiança para justificar um possível rompimento da ordem democrática, contando ainda com o uso da máquina pública em favor de Bolsonaro. Após o segundo turno das eleições, já em 2022, o grupo ampliou o uso da desinformação com intuito de manter os apoiadores em constante mobilização.

Bolsonaro, Braga Netto e outras 32 pessoas (entre civis e militares) foram denunciadas por organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima; e deterioração de patrimônio tombado.

A acusação é baseada em manuscritos, arquivos digitais, planilhas e trocas de mensagens. Abaixo, entenda como esse esquema funcionava, segundo a denúncia da PGR.

Início dos ataques


A denúncia da PGR aponta que Bolsonaro inaugurou os ataques ao sistema eleitoral ainda durante a campanha presidencial de 2018 e que persistiu na narrativa infundada de fraude após eleito, mesmo sem nenhuma irregularidade ter sido confirmada. Porém, o plano golpista teria começado a entrar em prática durante uma live no Palácio do Planalto, em 29 de julho de 2021, onde fez diversas críticas ao sistema eletrônico de votação e exaltou a atuação das Forças Armadas.

Contudo, reportagem publicada pela Lupa no dia seguinte sinalizava que nada do que foi dito pelo então presidente era novo e sequer indicava algum real indício de problemas com a urna eletrônica.

Embora a desinformação fosse reciclada, a partir daquele momento os pronunciamentos públicos passaram a progredir em agressividade, com ataques diretos aos poderes constituídos. O objetivo, segundo a PGR, era infundir um sentimento de indignação e revolta nos apoiadores com o propósito de tornar aceitável e até esperável o recurso à força frente à possível vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022.

Lula, aliás, é apontado como motivo para a escalada de ruptura com a normalidade institucional durante os pronunciamentos públicos de Bolsonaro. A denúncia indica que, em 22 de março de 2021, poucos dias após o STF confirmar a anulação de condenações do petista na Lava Jato, o núcleo da organização criminosa cogitou que Bolsonaro deveria passar a afrontar e desobedecer decisões do Supremo, chegando a criar plano de contingenciamento e fuga de Bolsonaro, se a ousadia não viesse a ser tolerada pelos militares.


Bolsonaro em ato na Paulista em 7 de setembro de 2021. Foto: Isac Nóbrega/PR

De acordo com a investigação, os ataques protagonizados por Bolsonaro durante as comemorações de 7 de setembro, em 2021, em São Paulo, contra o ministro do STF Alexandre de Moraes, não foram por acaso. Na ocasião, ele disse que não mais se submeteria às decisões do magistrado.

Bolsonaro também chegou a fazer ameaças a instituições como STF e TSE que, na opinião dele, estavam desrespeitando a Constituição, e disse que só Deus poderia tirá-lo do cargo. Também chegou a repetir mentiras sobre as eleições ao afirmar que “não podemos admitir um sistema eleitoral que não oferece qualquer segurança”.

Para a PGR, as investigações da Polícia Federal revelaram que o pronunciamento não era “mero arroubo impensado e inconsequente”. “Já então, o grupo ao redor do presidente houvera até mesmo traçado estratégia de atuação em prol do seu líder, incluindo plano de fuga do país, se porventura lhe faltasse o apoio armado com que contava".

Táticas de desinformação


A denúncia da PGR aponta ainda que para deslegitimar o sistema de votação, o grupo comandado por Bolsonaro criou uma estratégia em que buscava “estabelecer um discurso sobre urnas eletrônicas e votações” e de replicar essa narrativa “novamente e constantemente”. Para isso, eram direcionadas palavras de ódio, sobretudo on-line, contra personagens da vida institucional do país identificados como inimigos do grupo, em especial os que tinham a incumbência de dirigir as eleições e zelar pela normalidade do processo.

“Autoridades públicas do mais elevado grau de responsabilidade no contexto das relações entre Poderes foram alvo de perseguições e de informações falseadas, em detrimento da regularidade da vida democrática”, diz a denúncia.

Um exemplo é a reunião que ocorreu em 18 de julho de 2022, em que Bolsonaro apresentou a embaixadores mentiras sobre fraudes nas urnas. Para a PGR, o que parecia à época um lance eleitoreiro era, na verdade, um passo a mais na execução do plano golpista caso a eleição resultasse em vitória de Lula, uma vez que era importante conquistar a tolerância de outros países para colocar em prática a ruptura democrática.

A investigação descobriu anotações do general Augusto Heleno, um dos 34 denunciados pela PGR, em uma agenda, onde ele descreve a necessidade de estabelecer um discurso sobre as urnas e seguir atacando o sistema eletrônico de votação. Uma das determinações era não fazer referência a homossexuais, negros, maricas, etc.

"Em poder de Augusto Heleno também foram encontrados outros documentos relacionados a supostas inconsistências e vulnerabilidades das urnas eletrônicas, para servirem às mensagens infundadas propagadas", diz a denúncia.


Anotações do general Augusto Heleno em uma agenda apreendida pela Polícia Federal. Imagem: Reprodução

A ação coordenada contava com a criação e multiplicação de notícias falsas, contando com a estrutura de inteligência do Estado a partir da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).

“A estrutura era composta por policiais federais cedidos à ABIN e oficiais de inteligência que atuavam sob o comando do então diretor-geral Alexandre Ramagem Rodrigues. Entre eles ressaíam o policial federal Marcelo Araújo Bormevet e o sargento do Exército, ao tempo cedido à ABIN, Giancarlo Gomes Rodrigues. O núcleo atuava como central de contrainteligência da organização criminosa que, por meio dos recursos e ferramentas de pesquisa da ABIN, produzia desinformação contra seus opositores", diz a denúncia.

Uma das ações promovidas foi uma narrativa forjada contra ministros do Supremo que buscava incitar a existência de irregularidades no processo eleitoral. Na denúncia, são mostrados prints de posts compartilhados por Giancarlo Rodrigues no X (antigo Twitter) que indicaram um suposto caso de crime de responsabilidade e tráfico de influência.


Publicações enganosas no X que, conforme a PGR, foram compartilhadas pelo sargento Giancarlo Gomes Rodrigues. Imagem: Reprodução

“O material construído pela célula de contrainteligência era posteriormente repassado a vetores de propagação em redes sociais (perfis falsos e perfis cooptados); os verdadeiros beneficiários políticos da desinformação eram, assim, distanciados dos ilícitos", detalha a procuradoria na denúncia.

Outra estratégia utilizada por Bolsonaro era convocar reuniões ministeriais e incitar ataques às urnas com a difusão de notícias infundadas sobre Lula, uma vez que o petista era apontado como favorito. Um desses encontros ocorreu em 5 de julho de 2022, onde falou-se sobre o "uso da força" como uma alternativa. Na ocasião, o então presidente instigou os ministros presentes a propagarem o discurso de vulnerabilidade das urnas.

Intensificação dos ataques pré-eleição


A denúncia da PGR reforça que, com a aproximação do 1º turno das eleições de 2022, Bolsonaro e seus aliados intensificaram os ataques às urnas eletrônicas, principalmente com a perspectiva de derrota que se avizinhava. A estratégia era deslegitimar o processo eleitoral e criar um cenário de desconfiança. “Passa-se a buscar qualquer subterfúgio para lançar o sistema eletrônico de votação e apuração de votos ao descrédito popular", aponta trecho do texto da denúncia .

Para tanto, a organização criminosa precisou “ampliar a sua frente de ação”, incluindo o uso ainda mais ostensivo da máquina pública para interferir diretamente no processo eleitoral. O texto cita, por exemplo, o uso da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para dificultar a votação de eleitores, principalmente da região Nordeste, no 2º turno da eleição. A denúncia também cita que o Ministério da Justiça foi usado para mobilizar aparatos de órgãos de segurança para mapear lugares em que o Lula obteve votação mais expressiva no 1º turno.

“Ficou evidente que o grupo tentava, pelo uso da força estatal, forjar um resultado eleitoral favorável; caso a ação fracassasse, a narrativa de fraude já difundida serviria para promover a revolta contra a vontade estampada nos boletins das urnas”.

A PGR afirma ainda que, mesmo com os esclarecimentos dados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre os questionamentos feitos por Bolsonaro e aliados, “as informações falsas continuavam sendo dolosamente replicadas, sem qualquer contraponto aos dados trazidos pela Justiça Eleitoral”.


Jair Bolsonaro ao lado de Mauro Cid. Foto: Isac Nóbrega/PR

Mobilização pós-eleição

Após perder as eleições, Bolsonaro e seus aliados continuaram a tramar ataques contra as instituições democráticas, diz a PGR, usando a suposta farsa eleitoral como mote. A narrativa falsa das fraudes nas urnas foi alimentada, segundo a denúncia, pelos integrantes da organização, que repassavam material apócrifo para influenciadores digitais.

“O objetivo agora era manter a mobilização popular, com o que se pretendia sensibilizar as Forças Armadas, sobretudo o Exército, e as suas autoridades de mais alta patente, para que impusessem um regime de exceção, que desprezaria os resultados do sufrágio e imporia ao país a permanência no Poder do Presidente não reeleito”.

A mobilização em torno das operações estratégicas de desinformação ficaram a cargo do capitão reformado Ailton Gonçalves Moraes Barros, do major Angelo Martins Denicoli, do jornalista Paulo Renato de Oliveira Figueiredo Filho, do coronel Reginaldo Vieira de Abreu, do engenheiro Carlos Cesar Moretzsohn Rocha, do subtenente Giancarlo Gomes Rodrigues, do policial federal Marcelo Araújo Bormevet e do tenente-coronel Guilherme Marques de Almeida.

“Eles propagaram notícias falsas sobre o processo eleitoral e realizaram ataques virtuais a instituições e autoridades que ameaçavam os interesses do grupo. Todos estavam cientes do plano maior da organização e da eficácia de suas ações para a promoção de instabilidade social e consumação da ruptura institucional”.

Ainda de acordo com a denúncia, o esquema da organização durou até janeiro de 2023, culminando nos atos golpistas de 8 de janeiro. Um levantamento feito na época mostrou que mensagens no WhatsApp vinham sendo disseminadas dias antes dos ataques à sede dos Três Poderes, em Brasília, para instruir os vândalos a se juntarem na capital federal para "tomar as ruas".