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"Pode ter festa em julho, mas não dá para chamar de carnaval"

Bloco carnavalesco fundado durante gripe espanhola lança financiamento coletivo para ajudar músicos que estão passando fome na pandemia

Por O Globo 10/11/2020 09h09
'Pode ter festa em julho, mas não dá para chamar de carnaval'
Rafael Santos / Divulgação

Bloco carnavalesco mais antigo do Rio, o Cordão da Bola Preta atravessou seus 102 anos de vida trazendo uma história de resistência. Já em sua fundação, em dezembro de 1918, seus criadores enfrentaram forte repressão ao carnaval. Autoridades policiais tentaram impedir o desfile, amparadas por um decreto que proibia a criação de novos cordões. Mas o Bola insistiu. E fez seu début em 1919, naquele que ficou conhecido como o “carnaval da redenção”.

Após superar a epidemia de gripe espanhola (que matou mais de 14 mil moradores do Rio e até 40 milhões de pessoas no mundo), a cidade caiu na farra e viveu quatro dias inesquecíveis. “O carnaval de 1919 seria o da revanche, a grande desforra contra a peste que quase dizimara a cidade. Quem sobreviveu não perderia por nada aquele carnaval”, escreve Ruy Castro no livro “Metrópole à beira-mar” (2019).

Outros obstáculos pularam no caminho do bloco ao longo de sua trajetória, mas nenhum deles tão desesperador quanto uma nova pandemia, a da Covid-19, que deixou os músicos da banda sem trabalho desde o baile da última terça-feira “gorda”. Com o isolamento social, shows, formaturas, aniversários, casamentos e demais eventos que garantiam a subsistência dos integrantes ao longo do ano foram suspensos, e os músicos estão à míngua. Para amenizar a situação, o bloco acaba de lançar seu primeiro financiamento coletivo. A campanha “Vem pro Bola, meu Bem” fica no ar pelo site Benfeitoria até 7 de dezembro, com a meta de arrecadar R$ 40 mil.

— Muitos músicos estão passando fome, não estou exagerando — diz Pedro Ernesto Marinho, há 13 anos à frente do cordão, formado por 50 integrantes.

Oitenta por cento deles, aliás, têm mais de 60 anos e pertencem ao grupo de risco.

— O sucesso da banda do Bola tem a ver com a experiência de seus músicos. Trazem no sangue a tradição da música de carnaval e passam isso de geração para geração — conta Marinho. — Alguns estão na banda desde a década de 1960. Só param por doença ou quando Papai do Céu chama. Tivemos vários músicos infectados com coronavírus. Graças a Deus, nenhum morreu.

O Bola sobreviveu a uma época de escassez de blocos de rua, nos anos 1990. Era um dos únicos a manter a tradição de desfilar no Centro do Rio. Ao longo desse um século de existência, houve ainda as muitas dificuldades financeiras, que culminaram com a entrega de sua histórica sede, na Avenida 13 de Maio, na Cinelândia. O lugar foi a leilão em 2007, por causa de uma dívida gigantesca de condomínio. Em 2009, o Cordão, que arrastou aproximadamente 700 mil foliões para as ruas nos últimos dois anos — e em 2018 mais de um milhão, segundo a Riotur —, acabou firmando novo ponto no casarão da Rua da Relação 3, na Lapa, espaço cedido pelo Estado em regime de comodato.

Linhagem carnavalesca

Caso as doações ultrapassem a meta de R$40 mil, o restante será destinado às obras no telhado da sede, bastante danificado por conta das chuvas, e à montagem de uma estrutura adequada para o acervo de fotos, vídeos e documentos que mantém vivos os 102 anos do bloco. É um arquivo que se confunde com a própria história do carnaval carioca.

— O Bola Preta tem enorme importância afetiva e histórica para a cidade. É bacana imaginarmos que estamos participando de um fluxo, de uma linhagem carnavalesca que vem desde o início do século passado — destaca o pesquisador Felipe Ferreira, criador do Centro de Referência do Carnaval na UERJ e membro do júri do Estandarte de Ouro do GLOBO.

O Cordão da Bola Preta é o mais antigo bloco carnavalesco do Rio de Janeiro, tendo completado seu centenário em 2018. Além de arrastar mais de um milhão de foliões pelas ruas do Centro, o bloco traz em sua trajetória um baú de histórias do carnaval carioca.

A esperança de dias melhores, por enquanto, está depositada na campanha, já que o carnaval do ano que vem já é dado como perdido.

— Só botaremos o bloco na rua quando a vacina chegar — afirma Marinho, em consonância com várias ligas de blocos que bateram o martelo sobre a questão durante o Fórum Carioca do Carnaval de Rua. — Nem a 2ª Guerra Mundial ou a ditadura impediram o Bola de fazer carnaval. Mas vamos furar o de 2021 pelo bem de todos. Não podemos bater de frente com a ciência, em que acreditamos cegamente.

Se a vacina chegar a tempo, a ideia de fazer o carnaval do Sambódromo em julho, discutida entre as Escolas de Samba cariocas e a RioTur, também pode apontar um caminho para a rua. Marinho, no entanto, acha que é forçar a barra:

— Neste caso, pode até fazer uma grande festa em julho pela chegada da vacina, mas não dá para chamar de carnaval. Carnaval é em fevereiro, se não é sem poesia.

Por isso, o Bola já foca em 2022, quando Marinho acha que a folia pode se aproximar do que foi o carnaval de 1919.

— Acredito que a gente possa ter uma situação parecida. A euforia da libertação pelo fim da pandemia vai fazer o carnaval de 2022 pegar fogo.

O escritor Ruy Castro só espera que um aspecto inconsequente do carnaval pós-gripe espanhola não se repita em 2021.

— Em 1919, como a gripe já havia passado, as pessoas se jogaram em massa no carnaval porque ela poderia voltar e aquele ser o último de suas vidas. E não aconteceu nada porque a gripe tinha passado mesmo — lembra ele. — Agora é diferente. Em fevereiro ainda estaremos em plena epidemia, e o carnaval pode significar uma carnificina. Quem sair para pular pode, sim, estar vivendo o último carnaval de sua vida.

Diante da real projeção de um ano sem carnaval, o que poderia deixar marcas na identidade do carioca, Felipe Ferreira enxerga uma possibilidade de reinvenção que se aproximaria da origem da folia.

— Bloco oficial não vai ter, mas o carnaval acontecerá seja com dois amigos na rua ou em comemorações em casa. O próximo carnaval pode servir para a consciência de que somos nós quem o fazemos — afirma. — Durante muito tempo, os blocos se auto-organizaram. A gente vai ter que se organizar da nossa forma. Na essência, isso é o carnaval, e ele está acima de qualquer coisa.